As urnas eletrônicas e a consciência política de longo prazo nos processos eleitorais do país
Por Cássio Lima
Está previsto para setembro deste ano, a apreciação no plenário da Câmara dos Deputados da Proposta de Emenda à Constituição PEC 135/2019, que trata do Voto Impresso Auditável. A votação é em dois turnos e exige 3/5 dos deputados, o que representa a confirmação favorável de 308 dos 527 parlamentares nas duas sessões, segundo o regimento interno da Casa. O deputado Felipe Barros (PSL-RS) pretende apresentar o relatório final na Comissão Especial no final de julho. O plano de trabalho com requerimentos e audiência pública foi aprovado no último dia 17 de maio. No documento consta ainda a convocação do ministro Luís Roberto Barroso, que responde pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral).
Caso a PEC seja aprovada na Câmara, ainda passará pelo Senado. Com ritmo processual apertado, pode ser que não seja sancionada pelo presidente da República, em 2021. A Constituição Federal não permite mudanças eleitorais em ano de eleição. Atualmente, a agenda de discussões do Congresso tem sido ocupada por temas ligados à pandemia do coronavírus, reformas política e tributária, além da Comissão Parlamentar de Inquérito que investiga possíveis omissões dos governos municipais, estaduais e federal no combate à Covid-19.
O TSE sinalizou que será difícil que o voto impresso seja implementado nas eleições do ano que vem, mesmo que a medida seja sancionada pelo presidente da República. Segundo o órgão, é necessário que seja feita uma “licitação pautada por rígidos trâmites administrativos e burocráticos''. É preciso encontrar fornecedores capazes de atender uma demanda de mais de 500 mil urnas em todo o Brasil. A discussão tem ocupado as agendas não somente do Congresso, mas de movimentos sociais ligados à política brasileira, além de reacender o debate em torno da segurança das urnas eletrônicas.
A polarização política no Brasil tem influenciado de forma decisiva na tramitação da proposta, principalmente nos últimos dois anos. Manifestações de apoio ao presidente pelo país vêm pressionando a aprovação do voto impresso auditável. Por outro lado, o ministro Luís Roberto Barroso reafirma a eficiência das urnas eletrônicas. O posicionamento do magistrado não tem sido contestado no Congresso, apesar da retomada da tramitação da PEC.
Em setembro de 2019, a deputada federal Bia Kicis (PSL-DF) apresentou na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda à Constituição. Segundo a ementa do projeto, passa-se a exigir a impressão de cédulas em papel na votação e na apuração de eleições, plebiscitos e referendos no Brasil. Pelo texto, essas cédulas poderão ser conferidas pelo eleitor e deverão ser depositadas em urnas indevassáveis de forma automática e sem contato manual, para fins de auditoria. Em dezembro do mesmo ano, a PEC 135 foi aprovada na CCJ, com 33 dos 38 votos disponíveis.
O projeto ficou sem tramitação até 2021. O presidente anterior da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) não instalou a Comissão Especial que daria continuidade na análise da proposta. Em maio deste ano, o atual presidente Arthur Lira (PP-AL) determinou a criação da Comissão, que passou a contar com 34 titulares e 34 suplentes. A nomeação dos parlamentares ficou por conta das lideranças partidárias.
AS URNAS ELETRÔNICAS
A implantação das urnas eletrônicas no Brasil deu início em 1985 e foi concretizada em 1986, na época o país registrava 70 milhões de eleitores. Em 1994, o TSE realizou pela primeira vez o processamento eletrônico do resultado das eleições gerais daquele ano, com recursos computacionais da própria Justiça Eleitoral. Em 1996, os votos de mais de 32 milhões de brasileiros foram coletados e totalizados por mais de 70 mil urnas eletrônicas, o que correspondeu a um terço do eleitorado. Ao todo, 57 cidades com mais de 200 mil eleitores, entre elas, 26 capitais utilizaram a tecnologia. Cinco anos depois, as urnas eletrônicas chegaram a todos os brasileiros, na primeira eleição totalmente informatizada. Os números foram divulgados pelo TSE.
Até o momento, não foi comprovada nenhuma fraude nos equipamentos, com mais de 24 anos de uso, desde sua implantação nas eleições municipais de 1996. As urnas eletrônicas passaram por uma série de procedimentos de auditoria de dados e de checagem de hardware e softwares, até então, nada foi identificado que pudesse depor contra a tecnologia.
No entanto, estudiosos e profissionais de diversas áreas têm se dedicado a refletir sobre a possível implementação do Voto Impresso Auditável. O professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, Luiz Carlos Goiabeira, encara as discussões sobre o Voto Impresso Auditável como natural na Democracia. “Precisa analisar os impactos iniciais da medida e identificar as deficiências. Os ajustes poderiam melhorar a tecnologia, assim como foi na implantação do voto eletrônico”, lembra. O que mais preocupa Goiabeira é o desinteresse do eleitor, que não fiscaliza a classe política e nem acredita no próprio voto.
Já o jornalista Ivan Santos, que atuou por mais de 15 anos no extinto Jornal Correio de Uberlândia, admite que toda tecnologia carece de aperfeiçoamento e defende que as mudanças devem ocorrer na velocidade do mundo atual. Mas, Santos ressalta a eficiência dos técnicos da Justiça Eleitoral, que vem tomando decisões assertivas sobre a transparência dos equipamentos. “A discussão do Voto Auditável não passa de politicagem de politiqueiros. Quem defende esse tipo de voto é o presidente Bolsonaro, que levanta suspeitas sobre o modelo da urna eletrônica, com a intenção de ter argumentos para protestar contra uma possível derrota”, afirma o jornalista, que prioriza uma discussão técnica e não política sobre o Voto Impresso Auditável.
Quem também vem acompanhando o debate é o antropólogo Luciano Senna, que defende uma discussão mais aprofundada, por conta das raízes históricas de manipulação de resultados eleitorais. “A existência da Justiça Eleitoral desde 1932 atesta tal percepção. Qual seria o sentido desta preocupação com a lisura? Como explicar o conjunto intrincado de regras eleitorais na legislação brasileira”, argumenta Senna. O jornalista Victor Albergaria também defende a ampliação do debate. Para ele, a confiabilidade precisa ser absolvida pela população, não pode estar resumida nos argumentos de autoridade. “Nada pode impedir uma forma de garantir ainda mais a idoneidade do sistema. Acredito que o Voto Impresso Auditável será importante para o processo democrático brasileiro. Pode não ser o ideal, mas é um passo”, complementa.
Nesta configuração, Luiz Carlos Goiabeira reconhece que nenhum sistema de votação é infalível. “Desde os primórdios da República em que o coronelismo impunha o voto de cabresto, até no modelo impresso em que as assinaturas eram falsificadas em cédulas, observa-se a possibilidade de fraudar uma votação para este ou aquele candidato'', aponta. Goiabeira defende aperfeiçoamentos, mesmo com números favoráveis à tecnologia. “Muito embora o TSE tenha afirmado que nenhuma urna eletrônica tenha sido fraudada, o fato é que este modelo também é suscetível à fraudes”. O professor cita um estudo liderado pelo docente Diego Aranha, da Universidade de Campinas. “Descobriu falhas graves no sistema das urnas eletrônicas, através das quais conseguiu ter acesso aos votos depositados e o respectivo conteúdo. Em tempos de hackers imberbes que chegam a invadir sites do Pentágono, também seria possível invadir as urnas eletrônicas”, conclui.
A CONSCIÊNCIA DO VOTO NO BRASIL
A redemocratização no Brasil é recente, se considerarmos a proclamação da Assembleia Nacional Constituinte, em 1988. O retorno às urnas contabiliza 33 anos na fase atual do país, após o regime militar. A possibilidade de escolher um representante em níveis municipais, estaduais e federal contribui para o amadurecimento democrático, mesmo com registros de fragilidade no processo de aperfeiçoamento dos pleitos eleitorais.
O antropólogo Luciano Senna afirma que o debate político atual está diretamente ligado às relações familiares, diferente de outros períodos da política brasileira. “A partir da última eleição presidencial houve uma continuidade das disputas políticas, como se vê nas relações familiares, que antes se blindavam de conflitos eleitorais", analisa. Senna observa um certo esvaziamento de canais formais da política, como comitês e movimentos sociais. O debate tem se estruturado nas relações interpessoais.
A permanência do debate tem causado o fenômeno da polarização política, principalmente nos últimos quatro anos. Dificilmente, as notícias sobre Brasília e demais instâncias da República passam despercebidas nos celulares, tablets e computadores. As mídias digitais impulsionam ainda mais as discussões. Porém, o historiador Jeremias Brasileiro adverte que a interatividade não é sinônimo de maturidade eleitoral. "A consciência política sempre foi uma questão complexa. A narrativa de criação do país é um exemplo disso! Em que uns são aptos a mandar e outros a obedecer”, constata. O grande desafio apontado pelo pesquisador é conseguir atuar de forma significativa nas decisões de mandato. O voto não é suficiente.
Estender a participação política do período eleitoral tem sido desafiador para políticos e sociedade. O jornalista Victor Albergaria, que trabalha com a pauta política na TV Band Triângulo, aponta que a política tem perdido qualidade, apesar do voto fortalecer a Democracia. “A baixíssima qualidade do quadro político originou um problema: o eleitor não crê mais no sistema político. A eleição tornou-se uma obrigação. As boas ideias ficam em segundo plano”, explica. Para o jornalista, um dos comportamentos mais visíveis na crise de representatividade política é o distanciamento entre representantes e representados.
O antropólogo Luciano Senna vê a desconfiança no processo eleitoral como algo histórico, que vai se reinventando. “A fraude eleitoral é recorrente nos processos eleitorais. Nas eleições presidenciais de 1989, os candidatos distribuíam materiais de campanha: bonés e camisetas. Na Primeira República, a manipulação ocorria nas listas de eleitores inscritos, com a interferência dos coronéis”, conta Senna.
O jornalista Ivan Santos atribui as fraudes eleitorais à baixa participação política. A população não se preocupa em fiscalizar os políticos eleitos, muitos esquecem em quem votou. “O voto consciente é quando o eleitor escolhe um candidato com informações adequadas, ou opta por um programa de ação previamente anunciado”, alerta Santos, quando admite o voto por interesse no Brasil. “A Democracia é um regime que procura conciliar pensamentos e opiniões divergentes, em prol do consenso'', defende Santos.
O presidente nacional do movimento social Docentes pela Liberdade, Ebnezer Nogueira, aposta no Voto Impresso Auditável como medida de aperfeiçoamento. “O problema é que não sabemos olhar para o bom lado! Apenas falhas. Acho que o voto impresso será um marco na política. Resta saber se será mesmo implantado!”, reconhece o professor de música da Universidade de Brasília. Na tentativa de contribuir para uma maior consciência sobre a importância do voto, o TSE tem desenvolvido campanhas de conscientização eleitoral.
DEMOCRACIA E PEC 135/2019
O debate do Voto Impresso Auditável nutre deste ambiente de incertezas, que pode gerar um acirramento de forças mais acentuado nas eleições presidenciais de 2022. O Victor Albergaria descreve um cenário ruim, que pode impedir o trâmite da PEC 135/2019. “A discussão é importante! Mas precisa seriedade no andamento do projeto. O trabalho de alguns parlamentares não pode ser prejudicado, por estarem ligados ou não ao atual governo”, ressalta. Mesmo assim, o professor Ebnezer Nogueira acredita no amadurecimento do debate. “Tem gente esperando a palavra antidemocrático para pegar em armas. Isso não existe! A população brasileira é sábia e tem demonstrado isso”, aposta Nogueira.
Mas, a desconfiança de alguns segmentos da sociedade pode chegar aos extremos? Luciano Senna não descarta a inviabilidade do processo eleitoral. “Discussões em torno da modificação das técnicas que regem o processo eleitoral são sempre muito sensíveis. Há sempre o risco de que o resultado destas discussões seja um aumento da desconfiança no processo eleitoral, a ponto de inviabilizá-lo”, adverte Senna. Todavia, há movimentos contínuos de reformulação das regras eleitorais e das técnicas do voto. As novas concepções sobre: como se deve votar, organizar campanhas eleitorais, delimitar os critérios de elegibilidade sempre surgem no sistema eleitoral brasileiro.
O professor Luiz Carlos Goiabeira afirma que o debate está no aumento da confiança, não na inviabilidade. “Não penso que traria mais fragilidade. É necessário pensar nas possíveis adversidades que possam ocorrer no momento da votação e antecipar a elas, por meio de medidas preventivas”, considera. O jornalista Victor Albergaria localiza a Democracia na preservação de direitos e no respeito à capacidade de apoiar ou discordar. “Nenhum direito fundamental foi retirado da população nos últimos governos, ou mais especificamente, neste último. Continuamos circulando e produzindo conteúdo livremente. O direito de expressar opiniões contrárias ou favoráveis sobre quaisquer assuntos ainda nos é garantido pela Constituição”, reforça.
NA ESPERA DE 2022
As eleições majoritárias de 2022 indicam uma polarização. Na esquerda, o ex-presidente Lula. Na direita, o atual presidente Bolsonaro. Ivan Santos não vê possibilidade para uma terceira opção no cenário político nacional. “Não há no Brasil disposição para apoiar um candidato alternativo. A eleição ainda está distante!”, comenta. Mas, para Victor Albergaria ainda não saímos das eleições presidenciais de 2018. “O pleito de 22 será o terceiro e último round desse maniqueísmo destrutivo. Último! Porque deve se tornar mais claro que discussões apaixonadas não servem para definir o futuro de uma nação. Ao menos é o que espero”, analisa.
O historiador Jeremias Brasileiro não vê mudanças, para ele, a Democracia não está reduzida às disputas eleitorais. “O direito de votar não significa participação política! É mais amplo. No Brasil para-se no voto!”, compreende Brasileiro. Avaliação que também é defendida pelo antropólogo Luciano Senna que reforça uma participação política contínua, independente das urnas eletrônicas. “Por mais central que seja o sufrágio numa Democracia, a ponto de serem considerados sinônimos, é na participação política cotidiana e no respeito aos direitos sociais, civis e políticos que se estabelece o exercício democrático”, conclui.
O PAPEL DA IMPRENSA
Para o veterano jornalista Ivan Santos, a opinião pública no Brasil e no mundo sempre duvidou do que publicam os jornais. “Desde o Império as pessoas do povo dizem que papel impresso aceita tudo”, lembra. Santos atribuiu às redes sociais o aumento da desconfiança, ultimamente. “As pessoas ganharam o direito de divulgar notícias falsas! Fatos imaginários ou criados! Que produzem efeitos na opinião pública”, diagnóstica. Segundo o jornalista, o fenômeno é um desafio! Que deve ser enfrentado por todos os jornalistas. “Eu acho que as críticas positivas e negativas fortalecem as diretrizes editoriais de um veículo de comunicação. A essência do jornalismo continuará sendo a verdade”, finaliza.
Em contraponto, a inclusão digital trouxe uma capacidade maior para checar conteúdos. Ebnezer Nogueira aposta na comunicação disruptiva para difundir informações. “Basta um jornal publicar uma inverdade para não ser mais respeitado. Pena que os jornalistas não veem isso e estão perdendo campo para os Youtubers”, constata. Uma realidade que também é percebida por Victor Albergaria, a dez anos ele atua como jornalista. “A perda do respeito ocorre quando não se admite a compreensão dos fatos pelo público, sem a participação da imprensa. A grande mídia acha no direito de destrinchar o assunto da forma que lhe é mais conveniente”, relata. Para Albergaria, o papel da imprensa é deixar a cargo do público a opinião e quando o jornalista for opinar não pode ser definitivo. “O meu dever é priorizar o fato. A minha opinião deve ser honesta com quem consome meu produto. Assim, a imprensa pode ser compreendida como instituição fundamental para a sociedade”, finaliza.
O professor Luiz Carlos Goiabeira compreende a intolerância ao trabalho da imprensa, agravada na polarização política, à falta de consciência sobre o exercício da liberdade de expressão. “Essa liberdade como qualquer outra, encontra limites no momento em que o seu exercício ofende aos direitos fundamentais de outrem. A questão do limite consubstanciado no respeito ao direito alheio, ainda não está bem visualizada pelo brasileiro”, orienta. Para Goiabeira, o sentimento de pertencimento a uma sociedade caminha a passos largos quanto aos direitos, mas ainda engatinha quanto às responsabilidades.
Uma Democracia só existe com liberdade de imprensa! Por mais que a temperatura dos debates seja elevada. A cobertura da tramitação da Proposta de Emenda à Constituição 135/2019 continuará sendo feita, assim como, as eleições de 2022. O acesso à informação é um direito de todos! Mas ele só é possível com as garantias institucionais do livre exercício da imprensa, sem desconsiderar a autonomia do público para aceitar ou refutar os conteúdos.
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