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Sexta-feira ao meio-dia



Por: Madu Porto 




O ônibus para no ponto e todos sobem amontoados. O barulho do motor e do vento entrando pela janela ensurdecem a qualquer um que espera a hora de descer. Existe uma cadeira vazia lá no fundo e ninguém parece dar importância, decido ir até lá e me sentar. Do meu lado tem uma mulher miúda. Seu cabelo é curto e suas roupas desgastadas. Olho para ela enquanto seus olhos estão vidrados do lado de fora da janela sem nem perceber a minha presença. Seus lábios abrem e fecham lentamente, e eu deduzo que está tentando me dizer algo. Aproximo para tentar escutar melhor e ela olha para mim.


Vejo o seu rosto de frente pela primeira vez, como é triste. Escuto como uma voz distante ecoando “estou com fome”, a frase se repete pelo menos 3 vezes antes de eu conseguir entregar R$0,75 centavos que estavam no meu bolso - era todo o dinheiro vivo que eu tinha. Abri a bolsa para procurar mais e entre as mochilas um bombom esquecido arrancou-lhe um sorriso. A mulher olha para a mochila aberta e vê dois batons usados, eu falo que já estão no fim, mas ela insiste em querê-los. Entrego os dois sem pensar duas vezes e ela guarda rapidamente na mochila de pano que estava sob o seu colo.


A viagem passa ser silenciosa daí em diante. Ela me olha de cima abaixo e pergunta se não tenho roupas para doar. O desconforto subiu dos pés à cabeça em um instante, eu acabara de doar sacos de roupas há semanas, digo isso a ela, mas a moça insiste. Os olhos dela mergulham nos meus e a tristeza arrepia todo o meu corpo. Repito que não tenho nada mais para dar, ela abaixa a cabeça como quem não acredita. Olho em volta e todos estão em outro lugar.


Nesse momento, eu desejei também estar. Ela diz que não estava se sentindo bem, conta que o seu filho estava brincando descalço na lama e ela foi tirá-lo de lá. Não entendo bem a história, não consigo entendê-la, mas diz ter vomitado sangue. Fico preocupada e aconselho a ir ao médico. Pergunto se ela estava indo trabalhar, mas ela responde “não, estou atoa”. Me pergunto o que faz atoa uma mulher com fome no ônibus ao meio-dia de uma sexta-feira que havia vomitado sangue na manhã do mesmo dia? Por que estava congelada simplesmente olhando a janela? Sem querer, me coloco no lugar dela e sou tomada por uma revolta. Me imagino por segundos gritando no ônibus.


Engulo com força o choro que sobe pela garganta, porque quem sou eu para chorar, afinal, ela quem está sentido. O meu ponto chega e eu preciso descer. Tento me recompor, me despeço e a desejo melhoras. Pego a mochila, levanto-me e entro no meio da multidão que deseja descer no mesmo lugar. Piso na escada e olho para dentro do ônibus: lá está ela. Sentada, fraca, sozinha no canto, olhando para mim sem dizer nada, mas dizendo tudo uma última vez. 


Lembro que não perguntei o nome dela.


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