Empreendedorismo feminino no Brasil avança em meio a mercado historicamente machista
Por Allana Lima e Laura Fontoura
Ser mulher no Brasil é tão perigoso quanto viver em um estado de guerra civil permanente. Afirmação feita pela socióloga Lourdes Bandeira, em entrevista para o UOL, e vivenciada todos os dias na pele de quem é classificada como “sexo frágil”. As mulheres já nascem com desvantagens, que se perpetuam há séculos na sociedade patriarcal.
E como é sabido, as desigualdades são inúmeras. Elas existem desde o âmbito privado, por meio dos assédios, da vigilância exercida especificamente sobre elas, do pudor que é exigido das mulheres, até o âmbito público, por meio da desigualdade salarial, dupla jornada de trabalho e dificuldade para alcançar objetivos e ascensão na sua carreira. Onde somente o fato de ser mulher, te exige ser duas vezes "melhor" que os homens, que estão sentados ao seu lado.
E no campo do empreendedorismo não é diferente. O que era uma alternativa para tornar uma ferramenta de impulsão para que alcançassem a independência financeira e conseguissem tomar as próprias decisões, além de levar flexibilidade em horários e na quantidade de rendimentos mensais, se torna mais uma escolha mais pesada e cheia de responsabilidades. Uma vez que, socialmente, são obrigadas a conciliar a atividade profissional com as várias jornadas duplas, triplas ou mais.
Ao analisar o empreendedorismo no Brasil é preciso considerar que não vivemos em uma sociedade igualitária, que as oportunidades não se apresentam de maneira democrática para todos. Historicamente, questões como gênero e raça distinguem os acessos de cada grupo, que impactam também no mundo do trabalho, que, aliás, até pouco tempo não era um ambiente feminino.
Até 1962, no Brasil, as mulheres só podiam trabalhar com autorização do marido, segundo o site Nossa Causa. Quando decidiam por empreender não era diferente. De acordo com o Podcast Mamilos, somente a partir do mesmo ano, mulheres tiveram direito a ter CPF no Brasil, condição indispensável para abrir um negócio. Ou seja, até pouquíssimo tempo, o empreendedorismo era uma prática exclusivamente dos homens.
Ainda hoje, podemos perceber diferenças entre o empreender feminino e masculino. Segundo um estudo sobre o empreendedorismo feminino, a sociedade vê com bons olhos pessoas que empreendem, mas por outro lado ainda considera esta uma atividade tipicamente masculina.
De acordo com os dados do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), existem algumas diferenças quando estamos falando de empreendedorismo feminino e masculino. Normalmente, o masculino está ligado a grandes projetos e empresas, que visam o lucro. Já o termo empreender feito por mulheres vai além do lucro e também está relacionado com empoderamento, com visibilidade, com reconhecimento, acolhimento e compartilhamento de informações. Um retrato disso é que 68% das mulheres empreendedoras no Brasil trabalham em casa.
Durante anos, na história da sociedade, mulheres foram inferiorizadas em relação aos homens, sofrendo não apenas de desigualdade salarial, como também de violências de gênero e sendo obrigadas a exercer funções já pré-determinadas, de acordo com o seu sexo, pela sociedade. E, até os dias de hoje, quando se cita o empreendedorismo feminino, muitas pesquisas apresentam apenas o papel da mulher na economia brasileira e o seu perfil, já pré-estabelecido. Entretanto, erroneamente, não discutem sobre o contexto que essas mulheres estão inseridas e a sua perspectiva sobre o empreendedorismo.
Essa visão deixa de lado as vivências femininas, suas histórias, motivações e superações para empreender. E, ainda, desconsidera a discussão das dificuldades em dar os primeiros passos para a sua liberdade, considerando que muitas se veem em situações “sem saída” dentro do seu próprio lar e dos relacionamentos familiares. Nesse contexto, podemos encontrar mulheres que empreendem por necessidade, que enfrentam não só os desafios impostos pela sociedade, mas os desafios de dentro de casa, como relacionamentos abusivos. E, mesmo aquelas que empreendem por oportunidade, ainda assim, enfrentam obstáculos em seu percurso pelo simples fato de serem mulheres. Na maioria dos casos, empreender passa a ser uma saída para conquistar afirmação e liberdade.
Brasil
Nos últimos anos, o empreendedorismo feminino conquistou cada vez mais espaço, promovendo não somente o debate sobre o papel da mulher no meio empresarial, mas também gerando transformações importantes no meio social e econômico do país.
No terceiro trimestre de 2020 havia 25,6 milhões de "donos de negócio" no Brasil, e as mulheres já são responsáveis por 8,6 milhões (33,6%) dos empreendimentos, presentes principalmente nos setores de serviços (50%) e comércio (27%). Desafiando o pré conceito estabelecido no país, principalmente quando acreditam que as negociações ou o rosto de um empresário de sucesso trata-se de um perfil masculino já estabelecido.
Em outro estudo realizado pelo Sebrae, é possível visualizar que o empreendedorismo feminino no Brasil apresentou sinais de recuperação no último trimestre de 2021 depois de sofrer retração a partir dos primeiros meses da pandemia, com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnadc), mostrou que após recuar para um total de 8,6 milhões, no segundo trimestre de 2020, o número de mulheres à frente de um negócio no país fechou o quarto trimestre de 2021 em 10,1 milhões, mesmo resultado registrado no último trimestre de 2019, antes da pandemia.
As mulheres, diferente dos homens, empreendem não para obter renda extra, como geralmente acontece com o sexo oposto, elas buscam ter liberdade financeira e mais tempo com a família. Dados levantados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) ajudam a explicar a explicar a responsabilidade que a maioria das mulheres carregam: dedicam 10,4 horas por semana a mais que os homens aos afazeres domésticos ou ao cuidado de pessoas.
A flexibilidade oferecida pelo empreendedorismo, permite que as mulheres estabeleçam sua carga horária de trabalho, muitas vezes até mesmo o local, fazendo assim, uma rotina estabelecida por elas, e flexível o suficiente para conseguirem vencer todas as demandas. Para 40% das empresárias, o tempo que elas dedicam ao próprio negócio é de no máximo 40 horas semanais. Já para 19% delas, essa demanda não chega nem a 14 horas semanais.
Pandemia
A pandemia de COVID-19 assolou todo o mundo, causando medo, incertas e momentos de reflexão à todos, A doença que deixou mais de 657.205 famílias em luto, trouxe mudanças no cenário da saúde em geral, como também da economia e do cenário do empreendedorismo feminimo.
Segundo um estudo realizado pelo Instituto Rede Mulher Empreendedora, o Coronavírus foi um momento de transformações na forma de empreender para as mulheres, como também um momento difícil. Um exemplo são os das empreendedoras com filhos, onde mais de 50% delas alegaram que o fechamento das escolas impactou a rotina de trabalho, principalmente para as mães com filhos de 3 a 11 anos.
Em contrapartida foi nesse mesmo cenário que muitas se destacaram e conseguiram levar a sua escolha de vida ainda mais a sério, através do uso da tecnologia e de novas ferramentas de compra e exibição. Como é o caso da Cristina Santos, proprietária de um Agência de Marketing, que conta que com seu negócio no digital o sucesso da sua marca veio.
Mostrando que, em mais um período de dificuldade, o sexo visto como de maior fragilidade e com escassez de conteúdo, trata-se de mulheres que não só correm como os lobos, como criam os seus próprios animais. No meio do desemprego e da falta de renda gerada pela pandemia, ainda pelo Instituto é possível ver que das mulheres consultadas, 26% iniciaram seu negócio atual durante a pandemia.
Lembrando que elas acreditam sim, que esse momento ainda vivenciado por nós, dificultou e dificulta o empreendedorismo, mas foi através da digitalização que o sucesso se concretizou.
Segundo Luiza Vinhais, que é uma das donas da loja Chikérrima, de Uberlândia, a pandemia foi um divisor de águas para seu empreendimento, pegou todos de surpresa, mas conseguiram se adaptar bem. O mercado on-line foi a salvação da loja, apesar de já existir esse tipo de atendimento antes, durante o período de fechamento do comércio, essa forma de vendas aumentou muito. O momento de transição foi um pouco menos difícil, pois eles já contavam com entregadores, logística, atendimento, tudo organizado. Mas com um porém, todo o preparo que tinham antes era para um público imensamente menor; com a pandemia, 100% das clientes passaram a ser on-line e a Chikérrima ainda não tinha estrutura para isso. Foi um fator muito preocupante para Luiza, “A gente sabia o que fazer, tínhamos todo o esquema, mas quem estava acostumada a receber 20 mensagens no dia, passar a receber 250, foi loucura”.
A solução até parecia simples, contratar mais funcionários, mas, em uma pandemia, em que existia a insegurança quanto a conseguir manter o que já tinham, a possibilidade de contratar mais pessoas parecia totalmente inviável. “Eu ficava até dez horas da noite respondendo às clientes para que, no dia seguinte, não tivesse uma fila de espera tão grande”, lembra a empreendedora, que lutou para que a loja permanecesse viva. Hoje, a Chikérrima continua aberta e cresceu ainda mais.
Empreender: necessidade ou oportunidade?
Ainda no cenário de pandemia de COVID-19, observações sociais mostram que as mulheres tomaram a decisão ou o pontapé inicial no mundo do empreendedorismo, após muitas demissões e mudanças nas carreiras e nos caminhos profissionais, no ano de 2020. É em um cenário que por anos foi predominantemente comandado por homens, que o surgimento das mulheres incentivam cada vez mais outras mulheres a embarcarem nessa viagem de ser o seu próprio patrão. Entretanto, como já citado, os números por si, apresentam a misoginia no país e as dificuldades sofridas por cada mulher.
Violência contra a mulher, dentro e fora de casa, dependência financeira, emocional e psicológica, maternidade solo, jornada de trabalho dupla ou tripla, saúde mental e a desigualdade nas oportunidades e remunerações, são temas que estão diretamente atrelados ao empreendedorismo feminino e a necessidade de começar a sua marca.
“Se eu não tivesse empreendido na confeitaria, você nem estaria conversando comigo hoje" conta Cinthia Maria, de 45 anos, em uma entrevista, conosco, que mais parecia bate papo sobre a vida. A goiana, natural de Anápolis, revela que para ela a opção era morrer ou viver e, foi criando o seu próprio negócio que encontrou a força que necessitava para continuar vivendo.
Hoje, dona da sua própria doceria que assina pelo nome Cinthia Maria Confeitaria, ela é a prova de que o empreendedorismo tem o poder de transformar a vida das pessoas. E que mesmo que sem elas mesmo percebam, a necessidade leva até essa mulheres a escolha de ter uma vida estável e rentável através da sua marca.
Escritores como Luis Henrique Valenciano Sentanin e Reginaldo José Barboza (2005) foram precisos ao definir o empreendedorismo como processo de transformar as ideias em oportunidades perfeitas para o sucesso. O empreendedorismo é considerado uma prática positiva, tanto para a sociedade, como para a geração de empregos, para a economia e para o indivíduo empreendedor.
Além disso, para muitos, o indivíduo que empreende é associado, no imaginário social, a uma pessoa desbravadora, corajosa, com espírito de liderança e que não se submete às dificuldades que aparecem pelo caminho. Imagina só o papel da mulher nesse ambiente, sendo exigida e cobrada duas vezes mais.
E se para os homens, ao falar do empreendedorismo, focam no motivo para decidir se abrem ou não o seu negócio, vemos que para as mulheres a necessidade já toma essa posição de forma involuntária e se torna o gás para que essas mulheres não desistam do seu objetivo e de acreditar em si e na sua marca. O que falta é mais apoio e visibilidade, durante todo o ano e, políticas públicas que amparem as mesmas.
E ainda, é importante que essas mulheres estejam na posição de liderança, não só para a quebra dos preconceitos, como também para aumentar o ciclo de apoio feminino. É preciso salientar que o convite de trabalho para mulheres, em diferentes cargos, mostra a valorização do gênero e apoia a luta pela desigualdade.
E é com cada novo negócio que o feminismo faz parte da realidade deste mundo visto por anos como deles.
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