A ética e a competência como fomentadoras de práticas democráticas e cidadãs
Por Aline Camargo
A presença dos meios de comunicação de massa tem interferido na cultura coletiva e na formação da opinião pública desde a consolidação das sociedades urbano- industriais. Os veículos massivos são os principais indutores do consumo de bens materiais e simbólicos e os principais disseminadores de informações jornalísticas entre as diversas camadas sociais. Assim, agem como canais especializados em difundir ou direcionar, ocasionalmente ou intencionalmente, os debates da vida pública.
A centralidade do Jornalismo fica ainda mais evidente se considerarmos a ampliação do acesso às tecnologias digitais, em especial à internet, ferramenta que oferece variedades crescentes de informações, possibilita a criação de comunidades virtuais e permite que os diferentes participantes possam se envolver no diálogo a partir da troca de e-mails, chats, comentários etc.
Ainda que se considere a internet como um espaço plural nunca antes visto, em razão da redução dos custos de participação, a suposta igualdade entre os usuários, as possibilidades de interação, além da existência das comunidades online; pesquisas recentes apontam a virada conservadora na rede, e abordam questões que envolvem, por exemplo, o uso dos algoritmos, a lei de proteção de dados, a privacidade, o envio ilegal de mensagens, a inteligência artificial, a ‘uberização’ ou precarização do (tele)trabalho, a reverberação de discurso de ódio, as bolhas ideológicas, o aumento de crimes virtuais, a disseminação das fake news, a era da pós-verdade e outros temas.
O direito à informação
O direito à informação é preceito central no debate da transparência das ações, dados e fatos da administração pública e representa papel imprescindível na efetivação da cidadania. Neste sentido, aparece como particularmente relevante por ser um meio para acesso a outros direitos referentes à cidadania: Informação é a base primária do conhecimento, da interpretação, do diálogo, da decisão.
O papel desempenhado pela comunicação nos processos de integração sociais, sobretudo nas complexas sociedades midiáticas, é crescente. Se as modernas sociedades de massas são marcadas pela posse de direitos, sua complexidade demonstra a exigência da ampla difusão de informação e cria a necessidade de tornar claro e preciso o sentido do conceito de direito à informação.
Nas sociedades modernas, estruturadas como democracias representativas, todos os direitos em alguma medida relacionam-se com o direito à informação. O mundo contemporâneo, ao lado do processo de globalização e do regime neoliberal, prega a livre circulação de informações. Diferente de anos atrás, hoje, a troca de conhecimentos e de informação acontece a todo o momento, impulsionadas principalmente pelo fenômeno da internet.
A pandemia e a evidência da falta de transparência
A criação do consórcio de veículos de imprensa foi divulgada dia 08 de junho de 2021 como uma resposta necessária frente à decisão do governo Jair Bolsonaro de restringir o acesso a dados sobre a pandemia de Covid-19. Assim, veículos jornalísticos passaram a trabalhar de maneira colaborativa a fim de buscar informações sobre contaminados, óbitos e ocupação de leitos nos 26 estados e no Distrito Federal.
A partir de boletins diários, passou a ser divulgada também a evolução da imunização nos estados brasileiros. A iniciativa tem funcionado como alternativa à falta de transparência do governo e ao recente Apagão de Dados.
O caso da vacinação infantil
O país tem usado duas vacinas na campanha infantil: a versão pediátrica da Pfizer, aprovada pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para pessoas de 5 a 11 anos em dezembro de 2021, e a Coronavac, aprovada em janeiro de 2022 para a faixa de 6 a 17.
A vacinação de crianças com idades entre 5 e 11 anos começou em 14 de janeiro. Desde então, foram aplicadas 3,1 milhão de doses, o que equivale a menos de 20% da população na faixa etária prevista, de acordo com dados do consórcio de veículos de imprensa.
A pesquisa Vacinakids, realizada pela FioCruz nos meses de novembro e dezembro, identificou que entre os motivos listados pelos pais para não vacinarem suas crianças estão: medo de reações adversas à vacina, descrença em relação à gravidade da pandemia no Brasil, ideia de que crianças não se contaminam e crença que pessoas que já tiveram Covid-19 não precisam se vacinar.
A baixa adesão à vacina infantil pode ter a disseminação das fake news como uma das causas. Grande parte da desinformação sobre as vacinas cita a ocorrência de reações adversas graves das crianças aos imunizantes, como a miocardite (inflamação do músculo cardíaco). Estudos da Pfizer enviados à Anvisa não registraram esse problema em crianças de 5 a 11 anos. Em idades maiores (16 e 17 anos) o risco foi de 0,0077%. Assim, uma pessoa com Covid-19 tem quatro vezes mais chance de desenvolver miocardite do que uma pessoa vacinada.
Parte da desinformação sobre as vacinas foi estimulada pelo próprio governo federal. O presidente Jair Bolsonaro já se posicionou publicamente contra a imunização da faixa etária várias vezes, e chegou a intimidar os técnicos da Anvisa responsáveis pela aprovação, além de levantar dúvidas sobre a segurança e a eficácia do imunizante. Os ministros Marcelo Queiroga (Saúde) e Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) as questionou mais de uma vez.
O caso da ‘suposta’ (e já rejeitada) relação entre a vacina e a parada cardíaca
Em 20 de janeiro, foi noticiado no Jornal da Cidade (versões impressa e digital) a suspensão da vacinação na cidade de Lençóis Paulista após um caso de parada cardíaca em criança. Até então, não se sabia se havia, ou não, relação entre o imunizante e a reação apresentada.
Ainda que não houvesse comprovação, a cidade suspendeu a vacinação até que a situação fosse investigada. O que, já no dia seguinte (edição de 21 de janeiro), foi resolvido a partir da comprovação do diagnóstico de que a criança imunizada sofria da síndrome de Wolff-Parkinson-White, situação até então desconhecida pela família.
A postagem no Facebook do Jornal da Cidade referente à edição do dia 20 de janeiro (“Lençóis suspende vacina infantil após criança ter parada cardíaca”) teve 863 reações, 404 comentários e 599 compartilhamentos. Até então, com a suposta relação entre vacina e parada cardíaca ainda não confirmada, os comentários variaram entre “tendenciosa demais”, “irresponsável e tendenciosa”, “precipitado e irresponsável”, “acredito na vacina” e “jornaleco fuleiro, propagador de mentiras”.
Ainda na postagem do dia 20 de janeiro, também foram encontrados comentários que confirmavam a suposta relação: “eu não consigo achar que esse caso e outros que estou acompanhando aqui pelo face são exceções”, “usar crianças como cobaias é crime contra a humanidade” e “não vou jogar roleta russa para saber se minha filha foi escolhida”.
No dia 21 de janeiro, após a comprovação da não relação causal entre o imunizante e a reação, e com a retomada da vacinação infantil na cidade, a postagem (Estado investiga e garante que vacina não gerou parada cardíaca em criança) teve menos repercussão: foram 504 reações, 358 comentários e 56 compartilhamentos.
Entre os comentários, destacaram-se: “tudo agora é culpa da vacina”, “respeita a população dando tanta desinformação”, “esse jornal precisa averiguar os fatos para depois colocar a reportagem”, “prato cheio para os negacionistas”, “o JC é tendencioso mesmo”, “não tenho filhos, mas tenho sobrinho e este vai vacinar”.
Com a popularização dos usos e apropriações dos meios digitais, o antigo formato de jornalismo, seja na produção da notícia, na sua distribuição ou consumo, mudou de maneira irreversível. A agilidade, a independência na busca de informações e a troca de conteúdo que ocorre pelos usuários das mídias digitais transformam o jeito antigo do jornalista fazer notícias, mas também modificam a maneira como o público recebe e interpreta as notícias.
Urge retomar uma abordagem abrangente sobre antigos e novos papéis do jornalismo em tempos de cibercultura ou na “era informacional”. Afinal, mesmo nas sociedades liberais mais assimétricas e autoritárias, a imprensa desenvolveu-se com as premissas de ser um instrumento social coletivo capaz de ser fomentador de práticas democráticas e cidadãs. No atual momento histórico brasileiro, o jornalismo ético e competente é um dos instrumentos mais importantes para rechaçar a alienação política e a intolerância generalizada que contaminam a sociedade brasileira.
Comments