Por Luísa Duarte
Coletivo Acolhidas
Em 8 de março de 2019, foi lançado em mais de vinte idiomas e nos mais diversos países, o livro “Feminismo para os 99% – um manifesto”, de autoria de Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser. Três anos se passaram desde a publicação da obra, e entre inúmeras modificações societais, nos encontramos novamente no mês do Dia Internacional da Mulher.
Mais do que uma análise teórico-crítica do enlaço entre o capitalismo e a opressão de gênero, tal manifesto emergiu como um brado de radicalidade em face dos recentes retrocessos vivenciados na luta feminista. Assim, o livro buscou não apenas dar visibilidade às batalhas transtemporais vivenciadas pelas mulheres, mas também promover contundentes críticas às estruturas de poder e como estas operam na opressão de gênero.
Mais um oito de março passou, e além da fundamentalidade de pincelar as reflexões suscitadas pelas autoras, também é primordial que se possa dar voz, novamente, ao clamor pela revolução que elas pretenderam alguns anos atrás.
Para que se possa ter uma interpretação ampla da abordagem teórica de Fraser, Arruza e Bhattacharya, é importante saber que as pensadoras compreendem o feminismo à luz do materialismo histórico-dialético. Por se tratar de um manifesto intrinsecamente marxista, têm-se um apurado estudo de como as formas de opressão vivenciadas estão inerentemente correlacionadas à robustez e à austeridade da atual fase do capitalismo.
A obra alicerça-se em duas propostas simultâneas: a de ampliação da própria luta feminista, ao garantir que tal ideal se estenda às mulheres proletárias, negras, indígenas, transsexuais e tantas outras; e a de obstrução dos elementos que estruturam o capitalismo em si, por meio das lutas antirracista, antimperialista, antiLGBTfóbica entre outras.
A primeira frente de batalha travada pelas autoras se dá dentro do próprio movimento feminista. Durante muito tempo, a causa feminista foi amplamente compreendida nos limites das acepções impostas pelo feminismo liberal. Em razão disso, a luta restringia-se, em grande parte, às exposições de mulheres da classe média, sobre seus anseios de ruptura com as funções do lar, reivindicando igualdade no sistema capitalista. A obra busca romper com tal ideal à medida que, não apenas introduz contundentes críticas às lógicas reacionárias do feminismo liberal, como também frisa a necessidade de que a luta feminista abarque 99% das mulheres.
Propõe-se que o movimento supere a singela igualdade de oportunidades, uma vez que esta não é capaz de sanar o histórico machismo estrutural. Nesse sentido, busca-se transpor barreiras culturais e geográficas, colocando todas as mulheres como pauta inalienável do movimento.
Não se concerne ao egoísta ideal liberal de igualdade entre homens e mulheres no sistema capitalista, mas de efetivamente romper com tal sistema e com essa lógica de mercado, que nos promete liberdade, apenas para nos aprisionar cada vez mais.
A segunda luta a ser travada diz respeito ao desmantelamento das próprias estruturas que embasam, e perpetuam, a exploração no sistema capitalista. Após quatro décadas de soberania do neoliberalismo, vive-se uma crise generalizada, que se estende na saúde, na economia, na ecologia e na política. Ainda que as crises cíclicas sejam elementos constituintes do sistema capitalista, as que são vividas hoje são especialmente severas e escancaram a urgência de superação dessa lógica. Em face disso, o livro rejeita tanto os populistas reacionários, quanto os progressistas neoliberais, expondo que a única forma eficaz de cessar as misérias e barbáries é por meio do rompimento com o próprio sistema que as embasa: o capitalismo.
Diante de um momento de profundo sofrimento e incerteza, em face das mazelas trazidas pela pandemia, e do caos social em razão das crises que se instauraram, é fundamental que se possa perceber que tal colapso em nível global é fruto da faceta mais cruel do capitalismo: um neoliberalismo financeiro e globalizado. E mais importante ainda, é que a percepção dessa brutal desigualdade seja uma pílula para o despertar político e o comprometimento com a transformação social. De forma que o feminismo tenha o condão de ser não apenas um instrumento a serviço das lutas das mulheres, mas também de estar lado a lado com as lutas anticapitalista, antirracista, ecossocialista, trans aliada, internacionalista e tantas outras.
Em face às disposições gerais presentes no manifesto, evidencia-se que, ainda que publicado a alguns anos, seu brado de revolução permanece como urgente e necessário. É importante que comemoremos o Dia Internacional da Mulher, de forma que possamos olhar para aquelas que nos antecederam nessa batalha e tirar de suas histórias um suspiro de esperança para continuarmos.
Não obstante, e talvez mais essencial ainda, é que nesse dia possamos nos conscientizar da fundamentalidade de um movimento que seja essencialmente politizado e comprometido com os 99%. Um feminismo que tutele e esteja à serviço de todas as mulheres, respeitando a individualidade de cada luta, superando a concepção de mera igualdade entre homens e mulheres no capitalismo, pois de nada adiantaria algumas de nós sermos livres, apenas para nos tornarmos algozes de tantas outras. Concomitantemente, que sejamos capazes de consolidar um feminismo que tenha um profundo comprometimento político-social, apoiando grupos identitários e tendo como escopo maior a destruição do capitalismo em si.
Mais um dia 8 de março passou, e esse texto traz como escopo uma das pautas inalienáveis do feminismo: consolidar uma luta que seja feita por mulheres e para mulheres. Não possui o ideal pretensioso de esgotar as temáticas trazidas pelas autoras, sequer de ser uma exposição completa sobre as lutas que a causa feminista vivencia. Apresenta como singelo objetivo trazer algumas reflexões capazes de radicalizar uma luta que é tão fundamental e complexa. Que nos próximos "Dia Internacional das Mulheres" possamos rememorar todas as batalhas travadas por aquelas que nos antecederam, e que possamos nos conscientizar da necessidade de nos encontrarmos sempre do mesmo lado, e à esquerda.
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