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A fé de Mirtil

Felipe Melo

A chuva já caía há um mês, sem dar trégua. Uma água ácida, impossível de se beber. Eu já havia me acostumado ao cinza dos céus, já que não víamos mais o sol desde que começou a chover. Todas as lavouras haviam morrido, e tínhamos comido as últimas espigas murchas, do pouco que havia dado para salvar em meio à plantação encharcada.


A fome batia à porta junto com o medo, enquanto os habitantes da vila se reuniam em conselho, mais uma vez, para traçar as estratégias de guerra. Muitos haviam partido durante as últimas semanas, e os que sobravam estavam feridos, famintos, e exaustos. Deixei meu trabalho na reconstrução da muralha de madeira para acompanhar a reunião semanal, e o que encontrei ao chegar lá encheu meu coração do mais puro pavor.


Na cabana que servia como palco da reunião, o conselho, que outrora fora formado pelos homens da vila, hoje tinha como seus integrantes meia dúzia de velhos raquíticos, e uma pequena legião de adolescentes assustados. Poucos eram os homens em idade hábil para lutar, esses haviam sido os primeiros a ir para a guerra, e também os primeiros a morrer. Gladius, o ancião que presidia as reuniões, fez sinal para que as mulheres se sentassem em um canto, enquanto os homens faziam uma roda para discutir as baixas.


Meu marido foi um dos primeiros a partir. Era um homem influente em nosso pequeno vilarejo, vice-líder do conselho, e o primeiro a se voluntariar a liderar nossas tropas na luta contra os monstros. Morreu de forma digna, por isso eu sabia que devia honrar a sua memória, e tentava manter sua vontade ativa na comunidade.


- Temos trinta e cinco homens em condições de lutar. Três nos deixaram na última noite - Anunciou Gladius, deixando o pequeno círculo de discussões e se dirigindo a todos da vila. Fez-se um silêncio febril antes que ele continuasse, onde só podíamos ouvir a chuva que castigava o telhado de palha - Estamos tentando atrair os monstros para a montanha, para evitar que ataquem a vila enquanto os reparos no paredão são terminados. Montamos algumas armadilhas durante os últimos dias, com sorte podemos conseguir pegar alguns deles sem que tenhamos de entrar em conflito direto. Além disso, o pelotão secundário tem tido dificuldade em buscar água no rio, vamos ter que pensar em outra alternativa.


Ao meu redor as novas viúvas choravam, e as crianças órfãs berravam em um coro infernal. Os ânimos na vila eram péssimos, e todos estavam frustrados, tristes, e irritados, com as unhas roídas e os cabelos mal cuidados. Me levantei para falar, interrompendo o ancião.


- Capturar os monstros? Para que propósito? O que quer que bebamos se não a água do rio? - Eu já sabia sua resposta.

Gladius me encarou com fúria no olhar. Sempre havia respeitado meu marido, e odiava que eu tentasse fazer seu papel.


- Não temos comida nem água, Mirtil. Os animais abandonaram essa área, nossas lavouras estão mortas e esgotadas, roemos até a última espiga de milho velho, migrar está fora de cogitação. Os monstros vêm todas as noites, temos muitos feridos, estamos todos fracos, não conseguimos trazer água o suficiente para todos. É comer ou ser comido, beber a chuva ou morrer de sede.


- Carne de monstro é veneno! E nem preciso começar a falar sobre a chuva ácida. Vamos matar nossos doentes, e adoecer os que ainda estão sãos - Protestei, mesmo sabendo que seria inútil - Estou coordenando a reconstrução da muralha, precisamos de mais três dias. Temos de aguentar até lá, e rezar para que os deuses acabem com a chuva.


- Os Deuses antigos? Eles não nos ouvem! Se reza para eles é melhor que tente argumentar com as paredes, ou implorar aos monstros por misericórdia. Se continuar como está, Mirtil, as mulheres também terão de lutar. Você sabe disso, não é estúpida! Honre a memória de Dalton e pegue uma espada ou foice. Se não quer comer carne de monstro, o que sugere? Canibalismo?


Um sussurro de horror percorreu toda a cabana. Os pouco menos de cem sobreviventes estremeceram ao olhar uns aos outros nos olhos e se imaginar devorando ou sendo devorado por seus companheiros.


- As mulheres já estão todas trabalhando para reerguer a muralha, a única proteção da vila. As crianças maiores cuidam dos pequenos e dos enfermos. Temos que resistir mais um pouco em nossos papéis, sei que os deuses irão nos escutar. Se formos para a luta vamos abandonar a vila. Você se lembra o que aconteceu com o grupo de homens que nos abandonou, e eram alguns dos guerreiros mais fortes daqui. - Respondi.


Eu me lembrava bem, e sabia que Gladius também. Cinco guerreiros jovens decidiram ir embora depois de perderem suas famílias. Armados até os dentes, com suprimentos roubados, ainda saudáveis. Duas noites depois suas cabeças foram atiradas por cima da muralha. Os monstros eram sádicos, matavam para nos comer, mas também se deleitavam com a nossa agonia. Eram, também, razoavelmente inteligentes, o que nos colocava em uma posição delicada.

Eu atritava com Gladius por ser a única que ainda tinha coragem para discordar de suas opiniões. Se eu me calasse, aquele homem carregaria nossa vila para ruína a seu bel prazer. Mas também tentava ser razoável com ele, afinal, não importava para onde olhássemos, tudo parecia perdido. Por isso eu sabia que só podíamos resistir e ter fé. Se todos pedíssemos por um milagre, ele haveria de vir. Comer carne de monstro e beber chuva ácida era suicídio.


Quando a muralha estava de pé os homens ainda podiam se dar o luxo de sair para buscar água durante o dia. Mas agora tinha de ser à noite, caso contrário os monstros viriam direto para cá, e não teríamos como resistir. Era triste pensar nisso, olhando para aqueles adolescentes que mais pareciam cascas vazias, mas o papel deles era se fazer de isca. Não podiam mais sair durante o dia, ou não teriam energia para fazê-lo novamente à noite. Também não podiam se dividir, ou seriam presas fáceis para as hordas sedentas por sangue.


A reunião foi debandada e voltamos todos a nossos afazeres. Já entardecia, e logo o ataque noturno haveria de começar. Erguemos as toras de madeira, e as amarramos com corda de cipó tecido. O buraco que havia sido aberto há alguns dias já estava bem menor, sobrando apenas uma pequena fresta improvisadamente entulhada. Nosso ritmo de trabalho era esparso, a chuva não ajudava, e os monstros ainda conseguiriam entrar por ali se tentassem. Por isso, a única coisa que os guerreiros podiam fazer era atraí-los para longe dali.


Trabalhamos até escurecer, e obstruímos o espaço que ainda estava danificado com terra, pedras, e pedaços de madeira. Na próxima manhã teríamos de mover tudo de novo, e recomeçar o trabalho, isso também atrasava nosso ritmo.


As noites eram sempre preenchidas por terror. Antes de sair pelo portão, ao fim da tarde, os homens abraçavam suas famílias, se ainda as tivessem, e quase sempre choravam. Muitos haviam perdido tudo no começo da semana, quando a parede foi destruída e alguns monstros conseguiram invadir a vila, matando várias mulheres e crianças. Nesse dia consegui me esconder, mas ainda lembro do cheiro de carniça que emanava da criatura nojenta que passou a poucos metros de mim sem me perceber. Só de pensar que teria de comer aquilo meu estômago já se embrulhava. Mas a fome também era muita, e eu temia não ter forças para continuar trabalhando se não comesse algo logo.


Agora, enquanto a parede ainda tinha falhas, ficavam sempre cinco garotos armados para trás, com o propósito de defender a vila se houvesse outra invasão. O mais velho devia ter uns dezesseis, e todos eles portavam as espadas enferrujadas com dificuldade.


Gladius liderou o pequeno pelotão de trinta homens para fora dos portões, que ajudei a fechar com um baque surdo. Mais uma vez eles estavam sozinhos lá fora, e nós sozinhos aqui dentro. A noite caía, e eu já começava a me sentir impotente e assustada.


Fui para a minha cabana, ou o que havia restado dela. Acendi algumas velas sobre o altar de madeira, e rezei para que a deusa do fogo me concedesse proteção por mais uma noite. Rezei também para que protegesse os que haviam saído, e que haveriam de enfrentar mais uma noite de provação. Pensei na alma do meu marido, e pedi para que encontrasse a salvação. Clamei por força, para perseverar até que a última gota de chuva caísse do céu. Eu sabia que os deuses me ouviam, ao contrário do que Gladius havia dito, e por essa heresia pedi perdão.


O fogo brilhava à minha frente, me trazendo calor e aconchego. Eram as minhas últimas velas, por isso as apaguei tão logo terminei minha prece. Minha fé nos deuses antigos sempre fora forte, principalmente desde que Dalton morreu. Nessa ocasião, não blasfemei. Meu marido também era um homem de fé, e eu sabia que sua alma descansava no aconchego de um lugar mais calmo, sem monstros ou chuva ácida. Me agarrava a esses pensamentos, e na minha missão de conduzir a vila à salvação por nós dois.


Ele sempre me dizia que os deuses antigos representavam todas as forças de criação e destruição do mundo. Eram criaturas poderosas, de impossível compreensão, mas estavam sempre ali, fazendo o mundo se mover, trazendo novos tempos. Se recebíamos os castigos da fome, peste, guerra, e morte, certamente os havíamos enfurecido. Por isso nos restava rezar, sempre demonstrando nossa fé inabalável. Mas tempos difíceis testam a fé das pessoas, e a minha vila se sentia abandonada pelos deuses. Eu carregava esse fardo sozinha, mas tinha fé por milhões. “Amanhã a chuva haverá de passar”, eu repetia com certeza todas as noites.


Depois da prece me dirigi à enfermaria para ajudar a cuidar dos doentes. A noite estava escura, coberta por neblina, a água continuava a se derramar dos céus, e eu caminhava me atolando no barro, tentando inutilmente não me encharcar. O trabalho era árduo, e os feridos quase sempre estavam em situações desesperadoras, mas eu tentava não pensar nisso. Lavava e trocava suas bandagens, aplicava as pomadas de ervas, e fazia uma curta prece para cada um deles. Sempre rezava sozinha, ouvindo seus gemidos de dor, ou observando a total apatia de seus olhos exaustos. Mulheres, crianças, velhos, e homens, todos dividiam o espaço improvisado da antiga igreja, hoje abandonada pelos fiéis e transformada em enfermaria.

Eu terminava de enxaguar algumas bandagens quando ouvi os primeiros gritos. Como raios cortando a noite chuvosa, os berros vindos de algum lugar não muito distante penetraram em nossos ouvidos. Os sadios na enfermaria se entreolharam com pavor nos olhos, implorando silenciosamente para que não fosse o pior. Mas era. Talvez pelo cheiro de sangue, ou pelo faro que tinham para os fracos e indefesos, tinham sido atraídos diretamente para aquele lugar.


As portas da igreja foram derrubadas com um golpe abrupto, deixando que o vento frio e a água adentrassem de uma vez. Logo atrás um par de monstros vinha grunhindo e babando, dando passos lentos em sua postura semi bípede, apoiados em seus braços fortes com garras manchadas de sangue seco. Nos encararam por alguns segundos, se deleitando com o terror antes de arrancar nossas vísceras. Suas mandíbulas batiam em excitação, mostrando os dentes afiados e a língua viciosa.


Permanecemos estáticos. Alguns se urinaram, outros se esconderam sobre as camas de madeira. Eu só soube fechar os olhos e rezar. Se era esse o fim, estava ansiosa para ver Dalton. Tinha de respeitar a vontade dos deuses, no fim das contas, mesmo que sentisse que ainda tinha muito o que viver.


Eles fizeram seu movimento, se atirando sobre a cama mais próxima, dilacerando a primeira vítima e bebendo seu sangue. Não encontraram qualquer tipo de resistência, afinal, como poderiam? Éramos todos doentes e fracos, indefesos perante seus músculos e garras. Logo passaram para a próxima, sempre encarando sua vítima antes de se atirarem sobre ela. Os doentes começaram a se jogar de suas camas e rastejar pelo chão, numa tentativa falha, já que a igreja não tinha porta dos fundos por onde fugir. Logo nos amontoamos na parede dos fundos, esperando que acabassem de se deleitar e escolhessem a próxima vítima.


Antes que pudessem se atirar sobre a terceira vítima outras figuras adentraram pela porta escancarada. Eram os cinco garotos que haviam ficado responsáveis pela segurança da vila. Vinham todos juntos, as espadas desembainhadas sendo seguradas por mão trêmulas. Os monstros os encararam com cuidado, como se os analisassem. Deram passos lentos, virando sua atenção aos garotos, que recuaram, apavorados.


Os monstros se aproximavam deles, claramente não intimidados pela postura dos garotos ou por suas lâminas. Eu sabia que precisava fazer algo, ou seríamos todos dizimados. Agarrei o archote mais próximo na parede e o bradei como uma arma, gritando a plenos pulmões. Os monstros voltaram sua atenção a mim por breves segundos, mas foi o suficiente para que os cinco garotos se lançassem sobre eles em um ataque desesperado, cravando as lâminas enferrujadas na carne putrefata.


Ambas as criaturas bufavam e grunhiam, se debatendo no chão, chocando-se contra as camas e a parede, contorcendo-se de dor. Poucos segundos depois caíram, inertes, sobre a pedra fria.


- Por onde eles entraram? - Esbravejei sem perder tempo.


- Não sabemos. Provavelmente…


- Pelo buraco na cerca. - Concluí, em desespero - Andem, temos que fazer algo sobre isso, ou logo virão mais deles.


Nos dirigimos à falha na cerca de madeira que rodeava a aldeia, e pudemos perceber que de fato tinham cavado o entulho e escalado por ali. Juntei o máximo de pessoas que consegui, e passamos o resto da noite cobrindo a falha de entulho. Foi um trabalho estressante, sempre sob a perspectiva de que mais criaturas pudessem aparecer. Mas não apareceram. Ficamos de tocaia, armas e ferramentas em mãos, pelo resto da noite, com os ânimos à flor da pele.


Só conseguimos relaxar quando a noite se foi e os homens da vila bateram ao portão. Nem todos voltaram, pudemos perceber de cara. Mais cinco baixas. Estavam ficando cada vez mais frequentes. Mais de dez dias desde a última noite em que ninguém havia morrido. Além disso, muitos estavam feridos, sendo carregados pelos poucos que ainda tinham condição. Um deles era Gladius, tinha uma perna envolta em uma atadura improvisada, feita dos panos de sua própria roupa, agora em frangalhos. Não traziam monstros, como ele havia prometido na noite passada. Nas condições em que se encontravam, era um milagre que sequer tenham voltado.


- A vila foi invadida - Corri para avisar - Mataram dois dos nossos. Por sorte conseguimos matar os invasores.


O pelotão parou logo que o portão terminou de se fechar, e quase todos se atiraram ao chão na primeira cabana que encontraram.


- Invadiram pelo buraco na cerca? Me deixe! - Esbravejou Gladius se desvencilhando das tentativas de cuidado que recebia - Estou bem, foi só um arranhão.


- Tudo leva a crer que sim. - Respondi - Passamos o resto da noite entulhando a passagem, mas pode ser que invadam novamente. Precisamos concentrar todos os nossos esforços em terminar…


- Você disse que mataram os invasores? - Ele me interrompeu.


- Sim.


- Onde estão os corpos?


- O que quer com eles? - Perguntei, mais uma vez, sabendo a resposta.


- Não conseguimos capturar nenhum. Os monstros que vocês mataram serão nossa comida de hoje.


- Vocês não podem… Vamos rezar para que os deuses nos tragam comida de verdade. Carne de monstro é veneno!


- Escute Mirtil, se não quer comer, morra de fome. Olhe para os homens ao seu redor - Ele apontou para o que restava do pelotão. Mal pareciam estar vivos. - Se não comermos morreremos todos na próxima noite, e os próximos serão vocês. Se quer conversar com seus deuses faça isso sozinha, e peça para que mandem comida dos céus. Fomos abandonados, você não conhece a realidade para além desses portões. Voltamos a ser animais selvagens, essa é a realidade. Animais não cultuam deuses imaginários.


Encarei a face dos que haviam retornado. Vários deles balançaram a cabeça em concordância com Gladius. Me calei, era uma batalha perdida.


- Preparem a carne e a água da chuva para um ensopado - Ordenou Gladius enquanto eu virava as costas.


Voltei a trabalhar na reconstrução da cerca, junto a um pequeno grupo de mulheres. Muitas cuidavam dos feridos, outras esfolavam e cortavam os monstros que havíamos matado, algumas separavam o resto de palha e madeira seca que ainda guardávamos no balcão da vila para fazer o fogo.


Na hora do almoço o ensopado estava pronto. Tinha um cheiro forte, que mesmo nojento despertou a minha fome. Mas me recusei a comer. Carne imunda de criaturas da noite, comer aquilo não era diferente de canibalismo para mim. Continuei trabalhando sozinha enquanto todos comiam, a vila toda se entregou ao ensopado, deram até mesmo aos doentes. Encheram as barrigas, tigelas fartas, muitos disseram se sentir revigorados, e que a carne de monstro cozida nem era tão ruim.

No fim da tarde começaram as crises. Vômito, diarréia, febre alta. Um por um todos da vila caíram. Eu não sabia o que fazer. Para onde quer que eu olhasse as pessoas estavam caídas, incapacitadas, ardendo em febre, vomitando até as tripas. Os feridos abandonados na enfermaria, muitos morreram quando as crises começaram, outros agonizavam em suas camas.


A noite caía, o buraco na cerca ainda não estava completamente obstruídos, os homens todos se encontravam incapacitados.


- É o fim! Eu posso ver! - Eu ouvia gritarem.


- Vamos todos morrer aqui!


Blasfemavam e gemiam de dor, caídos no chão como o coro do inferno. Eu me sentia impotente, nada podia fazer. Era como se fosse uma novata que acabara de descer ao purgatório.


- Desgraçada! Faça alguma coisa! - Gladius gritou para mim, em meio à agonia - Reze para seus deuses, já que é a única coisa que sabe fazer!


O sangue, as fezes, os gritos. Tudo aquilo me enlouquecia. Não conseguia continuar ali. Fui correndo à minha casa quando a noite caía, me sentei ao altar, e acendi as velas. Foi quando ouvi os barulhos vindos da muralha. Golpes, pancadas, depois gritos. Os monstros haviam invadido, e dessa vez pareciam ser muitos.


“Os Deuses antigos? Eles não nos ouvem! Se reza para eles é melhor que tente argumentar com as paredes, ou implorar aos monstros por misericórdia.” As palavras de Gladius não saíam de minha mente. Mas eu rezava, sem parar. Tinha as mãos juntas com tanta força que podia sentir minhas unhas cravadas na carne das costas de minhas mãos.


Gritos, gritos, e gritos. Eu podia ouvir a destruição, os grunhidos furiosos, e a chuva que castigava sem parar. Mas eu tinha fé, com as mãos juntas implorei por um milagre, implorei pela salvação da minha vila, de todos que agora agonizavam. Clamei aos deuses com tudo de mim, fiz mil promessas, entreguei minha alma a seu serviço.


A destruição se juntava em um frenesi febril. Podia ouvir monstros destruindo a casa ao lado, matando os habitantes a sangue frio. Apertei mais as mãos e senti o sangue escorrer pelos meus braços. Clamei para ser ouvida, para que falassem comigo, para ter uma resposta.


“Não abra os olhos até que tenha acabado”


Ouvi uma voz dizer em minha mente. Era isso, os deuses haviam atendido às minhas preces! Fiz o que me foi ordenado e continuei a rezar, pedindo por tudo e todos, pelo fim da chuva e dos monstros. Foi quando ouvi o crepitar. Fogo. Ao meu redor tudo ardia em chamas, e eu conseguia sentir o calor sem que ele me machucasse. Conseguia sentir em meu peito o fogo se alastrando como a minha fé. Um fogo que queimava mesmo sob a chuva, um calor que me acalmava sem me ferir.


Os deuses haviam mandado esse fogo! Ele haveria de queimar até que o último monstro morresse. Haveria de arder trazendo conforto e esperança a toda a vila. O fogo queimou por horas sem parar. Eu podia ouvir os grunhidos angustiados dos monstros que morriam ao meu redor. Estava presenciando um milagre.


Quando as chamas pararam, já era dia. Só então abri os olhos, e pude ver que toda a minha cabana havia queimado, restando apenas um círculo imaculado ao meu redor. Meus olhos se encheram de lágrimas ao perceber que a chuva também havia parado, e os primeiros raios de sol nasciam no horizonte.


Me levantei, revigorada, e fui encontrar as outras pessoas da vila, ver quem precisava de cuidado ou ainda sofria com a disenteria. Mas, ao sair da cabana, o choque. Toda a vila havia queimado, não importava se monstro ou gente. Casas ao chão, corpos carburados, um silêncio ensurdecedor que agora me incomodava mais que os gritos. Estavam todos mortos, e eu ali, sozinha, protegida pela minha fé.


Fui ao chão, e soltei um berro do fundo dos pulmões, ao perceber a natureza sádica e egocêntrica dos deuses aos quais eu havia jurado entregar minha alma.

1 comentário

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1 Comment


Barbara Bernardes
Barbara Bernardes
Jan 13, 2022

Caraca, bom demais


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