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Coaches e a indústria do falso emagrecimento

Como a pressão para ter um corpo padrão afeta a saúde das mulheres


Por Barbara Jannini e Milena Félix


Basta menos de uma hora deslizando os dedos sobre a tela do celular, em alguma rede social, para encontrar discursos sobre como atingir o “corpo perfeito”, como alcançar metas estipuladas por influenciadores digitais que se autodenominam como coaches de emagrecimento e até vendem cursos que abordam a temática. Mesmo sem formação médica, essas pessoas receitam dietas e medidas inalcançáveis para milhões de outras pessoas que as acompanham no espaço digital das redes sociais.


Com 7,8 milhões de seguidores no Instagram, Maíra Cardi, que se descreve como “empresária do emagrecimento” disse que algumas pessoas podem tentar desviar indivíduos que fazem dieta desse caminho em busca do emagrecimento, comparando isso a um crime sexual e utilizando o termo “estupro alimentar”.


A psicóloga feminista Gabriella Lima afirma que as declarações de Maíra são um desserviço e que não possuem respaldo na literatura. “A influenciadora chama de ‘estupro alimentar’ quando alguém insiste para que o outro coma algum alimento. Maíra não considera que alimentar-se tem a ver com sentimentos, emoções, momentos de reunião, costumes, partilha, comemorações e o quão difícil é para todos nós desapegar/se acostumar com novos hábitos. Isso nada tem a ver com estupro”, explica.


Além disso, Lima reforça o perigo da comparação estabelecida pela influenciadora: “ser vítima de um estupro é um trauma que pode se estender durante a vida toda, desencadear ou colaborar no desenvolvimento de quadros depressivos graves, ansiedade, pânico, etc. É uma violação da vontade própria, do consentimento, do corpo, é desconsiderar qualquer humanidade da vítima”.


Quando nos chocamos com falas como a de Maíra, mais especificamente a parcela de mulheres que têm acesso às redes sociais, é como se gatilhos fossem automática e subconscientemente acionados dentro de nós. Mesmo que não tenhamos passado por nenhum tipo de violência ou transtornos alimentares durante a vida, sempre fomos ensinadas a como ser femininas e a como desempenhar os aspectos da feminilidade.


“A sociedade patriarcal dissemina padrões, regras de como nosso corpo deve ser. Somos pressionadas para ser de jeito A ou B, mas não porque isso faz sentido para nós, e sim por agradar o olhar do Outro. Esse Outro, geralmente é do sexo masculino. Mulheres ‘foram feitas’ para serem escolhidas por um homem. Para isso, devemos performar feminilidade: ter o corpo dito perfeito, sermos educadas, delicadas, etc. Mas e se não cumprimos essas normas?”, questiona a psicóloga.

Lima elucida que não é interessante para uma sociedade dominada por homens que nós, mulheres, nos vejamos como belas, seguras e detentoras de autoestima. “Isso significaria sermos libertas da aprovação e domínio masculino, nos impor em espaços que nunca foram nossos, questionar quem dita as regras, propor novas regras”, afirma.


Achar um caminho, dentro das mídias sociais, que desvie da cultura do que conhecemos como a indústria do emagrecimento é uma tarefa não muito simples, mas que pode ser facilitada com algumas dicas. “Um jeito muito legal e prático de encontrar conteúdos que fogem da regra, que dizem mais da vida real, corpos reais, é procurar assuntos por meio de hashtag. Isso gera várias possibilidades de perfis, textos, imagens relacionados com conteúdos saudáveis, por exemplo, ou vidas reais, autoestima, questionamentos sobre machismo, sobre o conceito de ‘ser saudável’ e por quê somos afetadas por distúrbios alimentares”, auxilia Lima.


A psicóloga conta que o processo de tratamento em relação a transtornos alimentares costuma ser longo e difícil, já que envolve relações estabelecidas na vida do paciente, papel da comida, o que desencadeia episódios de compulsão e restrição. “É necessário também que a pessoa entenda o contexto histórico e social que envolve o transtorno alimentar. Enfim, é uma análise do sujeito, que nunca pode ser definida por somente um ponto específico”.


A pressão estética contribui para oprimir e silenciar as mulheres. Foto: Freepik

Mas por que existe a necessidade da magreza?

Todo mundo parece querer - e precisar - ser magro. É quase ilógico, quando uma pessoa acusa a outra de estar gorda, questionar qual é o problema disso. Todos sabem qual é o problema de ser gordo. Ou, pelo menos, parecem saber. A resposta mais comum que ouvimos por aí é que “é uma questão de saúde”. Afinal, parece óbvio que uma pessoa acima do peso está - muito - doente, e que uma pessoa magra não só está “em forma”, mas também se preocupa com a própria saúde.


Os recados estão para todos os lados: são lembretes de que você precisa, mesmo, ser magro, e lutar com todas as suas forças para isso. Nas revistas, nas modelos, atrizes e cantoras, que são, na maioria das vezes, magras; nas críticas às pessoas gordas; nos lugares, roupas e assentos, que não cabem pessoas gordas; dentro de casa e no círculo de amigos, quando eles te criticam por ter engordado um pouco; nas bonecas, de corpos irreais; e nas redes sociais também.


Mas será que é verdade que é necessário ser magro para viver, e para ser feliz? É preciso ter um corpo pequeno para ser saudável? Quem responde isso é a nutricionista intuitiva, Isabella Scanavez, especialista em transtornos alimentares e mestre em Ciências, pela USP: “Hoje, nós temos muitos estudos trazendo pessoas com IMC de obesidade que são metabolicamente saudáveis, ou seja, têm todos os exames em dia”. Portanto, para a nutricionista, saúde e magreza não são sinônimos.


Caído esse mito por terra, qual é a justificativa que sobra para explicar o culto aos corpos magros? “No meu ponto de vista, realmente é importante a gente se questionar: ‘magro pra que?’, ‘pra quem?’. Ele é buscado por causa do padrão que nós temos hoje de corpo. Tudo o que envolve o padrão é muito difundido. Então, se você não se adequa ao padrão, talvez você não esteja inserido dentro da sociedade, ou dentro de um grupo”, esclarece Scanavez.


Ufa. É como tirar um peso enorme das costas, não é? Ouvir de uma nutricionista que pode estar tudo bem ter uns quilinhos a mais? Em seu Instagram, Scanavez publica sobre a necessidade de fazer as pazes com os instintos naturais, e com as sensações de fome e saciedade. Ela defende a auto permissão para comer. Afinal, quando se proíbe um alimento, a vontade não vai embora, e pode voltar como forma de ansiedade ou de exagero. Segundo a nutricionista, o emagrecimento feito de forma saudável é aquele que leva em consideração não só a alimentação e o déficit calórico, mas também aspectos como o sono, a saúde emocional, a hidratação e o exercício físico feito de uma forma prazerosa.


A dúvida que ainda fica é sobre como surgiu, então, a noção de que o magro é belo, e deve ser alcançado. Quem explica isso é a jornalista e feminista Naomi Woolf, em seu livro “O mito da beleza”. De acordo com Woolf, no final do século XIX e início do século XX, as mulheres haviam saído da “Segunda Onda feminista”, e elas já tinham obtido alguma liberdade sexual, e estavam, portanto, livres da opressão antes imposta. Então, o “mito da beleza” foi criado como uma forma de ocupar as mulheres, para que não se concentrassem na busca pelos seus direitos, e nem em assuntos políticos. Por isso, de acordo com a autora, foi estabelecido um padrão inalcançável, assim, as mulheres sempre estariam ocupadas. Além disso, o padrão, não coincidentemente, corresponde a um corpo torturado: faminto, desnutrido, e submetido a procedimentos violentos e doloridos. Woof afirma que a “fixação cultural na magreza feminina não é uma obsessão com a beleza feminina mas uma obsessão com a obediência feminina”.


Segundo Scanavez, a relação dos homens e das mulheres com o padrão estético é diferente. “O número de homens que está insatisfeito com o seu corpo tem aumentado cada dia mais, mas ainda assim, o sofrimento das mulheres é muito maior”, afirma a especialista. Para ela, essa diferença ocorre por causa da pressão que existe sobre o sexo feminino, e do quanto é exigido das mulheres na questão estética. A nutricionista conta sobre sua observação pessoal no hospital onde trabalha: “No ambulatório da USP de Ribeirão Preto, atualmente, nós atendemos um homem com transtorno alimentar, e todas as outras são mulheres”, exemplifica.


Qual é o problema?

Para Marina Rosa, jornalista, a necessidade de ser magra veio como uma certeza inquestionável, que aprendeu com sua família. "Dentro da minha casa isso sempre foi muito forte. Minha mãe sempre estava fazendo dieta. Meu pai sempre estava fazendo dieta. A família da minha mãe e do meu pai tem um milhão de problemas de obesidade, de pressão alta, diabetes. Eles sempre estão falando de emagrecer, e nunca conseguem”. A jovem de 23 anos relata que, depois de se mudar de cidade para fazer faculdade, quando ia visitar os pais, a primeira coisa que sua mãe lhe dizia era que ela tinha engordado.


A pressão estética pode causar transtornos alimentares e danos à saúde. Foto: Freepik

Essa relação, no entanto, teve complicações sérias para a vida de Marina. A jovem enfrentou um quadro de Bulimia Nervosa, que desenvolveu ao longo da vida e teve um pico durante seus anos de faculdade, entre 2017 e 2019. “Eu não sei exatamente como começou e nem como acabou. Eu sempre fui uma criança grande e gordinha, e fui muito zoada por isso. Mas eu acho que na adolescência foi quando começou a ficar problemático. Eu olhava muito pro espelho, fazia muito exercício físico, e estava sempre em dieta. Fiz dieta detox, parei de comer carboidrato, parei de comer arroz, e acho que foi isso que desencadeou esse ciclo de restrição”, conta a jornalista.


Marina diz que, por ser uma mulher grande, ela acabava se sentindo inadequada. Afinal, a mensagem que ela recebia era de que as mulheres deveriam ser sempre pequenininhas, magrinhas e com uma presença sutil. Mas a sua presença, pelo contrário, não passava despercebida.


Depois dos anos de adolescência, Marina passou na faculdade de Jornalismo na UFU, e se mudou para Uberlândia, para morar sozinha. O marco foi decisivo para a relação da jovem com a alimentação, e para o agravamento do seu transtorno alimentar. Emocionalmente abalada pela distância da família, e, agora, responsável pela sua própria alimentação, ela iniciou seus ciclos mais intensos de bulimia. “Eu comecei a me restringir muito, e, logo depois, tinha uma compulsão gigante. Eu já cheguei a comer toda a comida que tinha na minha casa, até os saquinhos de ketchup da geladeira”, relembra. Com os altos e baixos, Marina engordou 14 kg rapidamente, e isso gerava, nela, muito sofrimento. “Eu já fiquei um dia sem comer, fazia exercício até me machucar, ou, logo depois que eu comia, eu já deitava no chão e ia fazer abdominal. Chegou um ponto em que eu comecei a me punir quando eu comia. Eu ia pra frente do espelho e me xingava, me batia”, conta a jovem.


Os transtornos alimentares, de acordo com Scanavez, “são doenças psiquiátricas caracterizadas pelo comportamento alimentar inadequado e também por uma relação com o corpo muito disfuncional. São transtornos que vão afetar diretamente a alimentação da pessoa e também a relação com o corpo”, define. De acordo com o Ministério da Saúde, transtornos como compulsão alimentar, bulimia e anorexia afetam quase 5% da população brasileira; mas, entre os mais jovens, esse número chega a 10%.


Marina, hoje, reflete sobre o momento que viveu, e diz que a sensação é de não desejar isso para ninguém. “É como se eu tivesse ansiedade, e o gatilho para gerar uma crise fosse acontecer de três em três horas, como uma necessidade natural do meu corpo”. É esse o sofrimento observado em pacientes que tiveram o impacto da pressão estética em sua vida e saúde física e mental. Em uma coisa, Marina e Scanavez concordaram: ambas disseram que o problema dos discursos sobre emagrecimento é que eles dão uma resposta pronta para milhões de pessoas diferentes. E cada pessoa tem uma realidade, um metabolismo, um corpo e uma rotina totalmente diferentes. Não é possível que essas receitas milagrosas, então, sirvam para todas elas. E isso faz desses discursos irresponsáveis.


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