Como o jornal Correio do Brasil e a Revista Piauí construíram reportagens sobre a fome a partir da notícia publicada pelo jornal Extra
O inquérito realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan), em 2021, teve como objetivo “analisar a Insegurança Alimentar no Brasil no contexto da pandemia da Covid-19” (REDE PENSSAN, 2021, p. 9). A Rede teve como amostra 2.180 domicílios do território nacional, considerando as regiões Norte, Nordeste, Sul, Sudeste e Centro-Oeste, sendo 1.662 domicílios localizados em áreas urbanas e 518 domicílios rurais. O documento mostra que “do total de 211,7 milhões de brasileiros(as), 116,8 milhões conviviam com algum grau de Insegurança Alimentar e, destes, 43,4 milhões não tinham alimentos em quantidade suficiente e 19 milhões de brasileiros(as) enfrentavam a fome” (REDE PENSSAN, 2021, p. 10).
No mesmo ano, cinco meses depois da publicação do Inquérito Nacional conduzido pela Penssan, no dia 29 de setembro, o Jornal Extra publicou uma matéria em que um caminhão com restos de osso e carne, na zona sul do Rio de Janeiro, no bairro Glória, era procurado por pessoas que passavam fome e não possuíam dinheiro para comprar alimento. A realidade de fome e miséria enfrentada pela população brasileira, agravada pela pandemia da Covid-19, mostra que “a superposição da emergência da pandemia da Covid-19 com as crises econômica e política dos últimos anos impactou de forma negativa e relevante o direito humano à alimentação adequada e saudável do povo brasileiro” (REDE PENSSAN, p. 11, 2021).
Além da análise por região, o documento estruturado pela Penssan concluiu que
Às desigualdades regionais observadas somam-se outras de natureza sociodemográficas que refletem o agravamento das condições de acesso aos alimentos entre as diversas regiões e, também, no interior de cada uma delas. Os rendimentos familiares, raça/cor da pele autodeclarada, gênero, idade e acesso às políticas públicas são reconhecidamente os indicadores que refletem ou agravam as desigualdades regionais no Brasil (REDE PENSSAN, , 2021, p. 39).
Nesse sentido, o presente trabalho busca analisar como a condição de fome no país foi retratada por reportagens de dois veículos diferentes, depois da publicação da matéria produzida pelo Jornal Extra, que repercutiu em todo o país.
Metodologia
Com o objetivo de aplicar uma análise crítica de mídia, foram escolhidos dois veículos jornalísticos . O primeiro deles foi o jornal Correio do Brasil, na versão online – que corresponde ao site do veículo. O Correio foi selecionado por estar localizado no Rio de Janeiro, estado em que se deu a matéria escrita pelo jornal Extra, em 29 de setembro de 2021.
O segundo deles foi a Revista Piauí, também analisada através do site. A Revista é conhecida pela publicação de grandes reportagens, aprofundamento e investigação detalhada, enquanto o Correio se atenta, na maioria das vezes, à produção de reportagens factuais e mais curtas em extensão de texto.
Para isso, foi recortado um período no tempo, correspondente ao dia 29 de setembro de 2021 – data de publicação da reportagem sobre o caminhão com ossos e carne, pelo jornal Extra – até o dia 31 de dezembro de 2021, data próxima às festividades de fim de ano, em que a busca por alimentos para as ceias aumenta, e os preços também.
Na barra de pesquisa de cada um dos sites, foi digitado o termo “fome”, resultando em oito publicações no jornal Correio do Brasil, e em seis reportagens produzidas pela Piauí, no período selecionado. Alguns critérios de análise foram estabelecidos para que fosse possível estabelecer uma linha de raciocínio entre as matérias e, ao mesmo tempo, observar quais aspectos são abordados ou não nas reportagens, sendo eles: 1) As matérias mencionam o termo “direitos humanos” ou se referem à alimentação como um direito do cidadão?; 2) Aspectos de raça e gênero são abordados nas reportagens selecionadas?; 3) Quantas e quais fontes são utilizadas nas publicações?; 4) As produções mencionam o caso de setembro no Rio de Janeiro?; 5) Elas retomam possíveis causas para o problema da fome ou propõem soluções?; e 6) Elas preveem contextos e estatísticas futuras? Desse modo, os critérios de análise auxiliarão no desenvolvimento de um percurso analítico que busca observar as reportagens por meio de um roteiro pré-estruturado.
DESENVOLVIMENTO
A primeira reportagem publicada pelo Correio do Brasil, entre o período de análise estipulado, em que o título utiliza a palavra “fome”, data de 7 de outubro de 2021. Ela é de caráter internacional e não fala sobre o Brasil. O termo “direitos humanos” é utilizado na reportagem para se referir ao cargo que a única fonte utilizada na matéria ocupa, o relator especial de direitos humanos da ONU para a República Popular Democrática da Coreia, Tomas Ojea Quintana. O texto não se aprofunda em temas raciais, mas faz uma rápida menção a uma “apatia insidiosa” mundial em relação ao povo norte-coreano. O texto busca em falas de líderes da Coréia do Norte causas que podem ter levado à situação de fome no país e faz a previsão de que “O agravamento da situação humanitária pode se transformar em uma crise” (CORREIO DO BRASIL; REUTERS, 2021, documento eletrônico).
No dia 14 de outubro de 2021, o Correio do Brasil publica outra matéria em que o termo “fome” aparece no título. Ela faz uso de quatro fontes documentais, convidando ainda a autora de um destes estudos, Miriam Wiemers, e uma fonte personagem, Joe Mzinga, porta-voz do Esaff, uma rede de pequenos fazendeiros da África oriental e meridional. A reportagem cita o combate à fome como o “direito de acessar comida adequada e nutritiva” e o termo “direitos humanos” aparece duas vezes na fala de uma das fontes, em referência à alimentação. O texto, de caráter mundial, cita o Brasil, mas não o acontecimento no Rio de Janeiro, além de estabelecer causas para a fome e relacioná-la com outros fatores, como a violência. A reportagem prevê que “o número dos subnutridos aumentará em 30 milhões até o ano 2030. Outros estudos indicam que entre 2020 e 2022 poderá haver 2,6 milhões de crianças com crescimento atrofiado, para além das expectativas pré-pandemia” (CORREIO DO BRASIL; WL, 2021, documento eletrônico). Não há debate sobre raça ou gênero.
A publicação do dia 14 de outubro de 2021 apresenta uma fonte, o vice-presidente da Abras, Marcio Milan, e não utiliza as palavras combinadas “direitos humanos” ou “direito” para se referir à alimentação de qualidade. Ao mesmo tempo, a matéria faz uma previsão de que o número de pessoas vítimas da fome aumentará em todo o país. Ela não aborda questões raciais ou de gênero, nem propõe soluções para o problema, mas relaciona o aumento dos preços dos alimentos, devido à inflação e ao desemprego, ao aumento da fome. A reportagem não retoma o acontecimento no Rio de Janeiro.
Na próxima reportagem, publicada no dia 17 de outubro de 2021, o termo “direitos humanos” aparece duas vezes ao longo do texto e uma vez na fala de uma das fontes, que são três: uma documental; a antropóloga Maria Emília Lisboa Pacheco, representante do Fórum Brasileiro de Soberania, Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN) e assessora do Programa Direito à Segurança Alimentar, Agroecologia e Economia Solidária da FASE; e o ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), Francisco Menezes, atual assessor de políticas da ActionAid. A matéria aponta causas que levaram a uma situação de miséria e as relacionam com a fome, mas não lembra do dia 29 de setembro no Rio. Além disso, ela propõe soluções para o problema e trata de questões de raça e de gênero: “[...] a situação de insegurança alimentar é agravada conforme avançamos na análise interseccional de gênero, raça e territorial” (CORREIO DO BRASIL; ACS, 2021, documento eletrônico).
No dia 22 de novembro de 2021, o texto publicado é uma matéria de opinião. Ela não usa o termo “direitos humanos”, não relembra o caminhão com ossos e carne no Rio de Janeiro – apesar de retomar outro caso real no mesmo estado –, não faz uma análise racial e de gênero, não busca as causas dos problemas, mas faz uma previsão para o futuro.
Nesta outra produção, do dia 25 de novembro de 2021, “direitos humanos” não aparece no texto, ao mesmo tempo em que não são incluídas discussões sobre raça e gênero. Apresenta-se relação da fome com possíveis causas, mas não há previsão descrita, nem soluções. Também não há recordação do caso retratado pelo jornal Extra. São citadas sete fontes, entre documentos e personagens, sendo elas: Pinho, coordenadora da Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneiras; Instituto Centro de Vida; cacique Antônio José da TI Valparaíso, do povo Apurinã; Inpe; levantamento feito pela UFMG e pelo Ministério Público Federal; Repórter Brasil; e Ministério Público. Além disso, a fome é relacionada com causas apontadas no texto da matéria.
Já nessa outra reportagem, do dia 10 de dezembro de 2021, duas fontes são utilizadas, o relatório da FAO e a historiadora e pesquisadora do programa de pós-doutorado do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), Denise De Sordi. Não são feitas previsões, nem há relação estabelecida com temáticas de gênero e raça. Soluções também não são apresentadas, mas causas para a fome são recuperadas ao longo do texto.
Na última matéria selecionada dentro do período estipulado, do dia 21 de dezembro de 2021, são empregadas quatro fontes: o IBGE; o IPCA; a Central de Movimentos Populares (CMP); e Matheus Peçanha, pesquisador e economista do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV IBRE). Não há referência à raça ou gênero, mas a fome é relacionada com outras causas. Também não são propostas soluções, nem há previsão. O caso no Rio não é citado.
Em seguida, depois da análise das reportagens produzidas pelo Correio do Brasil, serão analisadas as matérias escritas pela Revista Piauí. Inicialmente, no dia 6 de dezembro de 2021, foram publicadas duas delas. Na primeira, foram utilizadas duas fontes, a Rede Penssan e o Instituto Nacional de Estatísticas do Chile. Não houve relação estabelecida entre a fome e os temas de raça e gênero, não foi usado o termo “direitos humanos”, não houve proposição de soluções, nem previsão. A fome também não foi relacionada com possíveis causas e o caso do Rio não foi apontado.
A segunda, por sua vez, relembra e coloca um link para acesso à matéria do jornal Extra sobre o caminhão com ossos e carne no Rio de Janeiro. Ela usa quatro fontes, sendo elas: DIEESE; Rede Penssan; Instituto Nacional de Estatísticas (Chile); Governo Federal. Não há previsões, proposição de soluções, nem relação com raça e gênero, mas a fome é relacionada com outras causas. Também não é utilizado o termo “direitos humanos”.
Na reportagem publicada no dia 7 de dezembro de 2021, uma fonte foi utilizada, a Rede Penssan. Não há menção aos direitos humanos ou ao direito à alimentação, não há solução para problemas ligados à fome, nem previsões. Ao mesmo tempo, não se estabelece relação com assuntos de gênero e raça, nem são descritas causas que possivelmente levaram à fome. O caso no Rio não foi retomado. A matéria do dia 8 de dezembro de 2021 segue as mesmas características citadas na reportagem anterior.
Já a reportagem do dia 10 de dezembro de 2021 faz uma breve menção à escravidão e, com isso, aborda causas que levam ao problema da fome. Os termos “direitos humanos” e “direito fundamental” também aparecem na reportagem, em referência ao acesso à alimentação. As fontes consultadas são a Rede Penssan, o Dieese, a Sandra Maria de Freitas, e o ex-diretor da FAO e atual diretor do Instituto Fome Zero, José Graziano da Silva. Com as falas de Sandra, a reportagem alcança a temática de gênero, sendo “as milhares de ‘mães solo’ o maior contingente das vítimas da fome” (BENEVIDES; COMPARATO, 2021, documento eletrônico). A reportagem propõe soluções para os problemas apontados no decorrer do texto, além de fazer previsões com base nos dados que ela demonstra. Ela não relembra o caso no Rio.
A última reportagem, do dia 13 de dezembro de 2021, conversa com nove fontes: a Maria Lucidalva Monteiro Feliciano; a Ellen; a nota do vereador Milton Leite; o pai de Ellen, Abismael Pereira; a irmã de Ellen, Eidy Anne; o jornalista Raul Juste Lores; o IBGE; a Rede Penssan; e o secretário Carlos Bezerra Júnior. Não se usa o termo “direitos humanos”, mas há relação da fome com outros fatores. A matéria menciona previsões futuras, mas não cita o caso do Rio de Janeiro, nem propõe soluções.
Conclusão
O objetivo deste projeto foi analisar as reportagens produzidas pelo Correio do Brasil e pela Revista Piauí dentro do período de 29 de setembro de 2021 a 31 de dezembro do mesmo ano, intervalo próximo à notícia publicada pelo jornal Extra, em 29 de setembro, sobre um caminhão com ossos e carnes no Rio de Janeiro. Sob a ótica de alguns critérios de análise, foram estabelecidos pontos que pudessem auxiliar na observação dessas matérias e se estruturassem medidas comparativas.
A maioria das matérias não retomou o caso de repercussão internacional noticiado pelo jornal Extra, mesmo as que foram publicadas em datas mais próximas do acontecido no Rio. No entanto, a temática sobre a fome foi bastante pautada no período estudado, algumas atendendo a todos os critérios de análise e outras, apenas alguns. Cabe salientar que a maioria das fontes foram documentais ou dados, mas as reportagens optaram pela utilização de mais de uma fonte, na maior parte.
As reportagens trazem dados úteis à população e informações de serviço à comunidade. Embora se esperasse que as matérias produzidas pela Revista Piauí tivessem uma extensão textual maior, as reportagens seguiram o mesmo nível de desenvolvimento e, por vezes, utilizaram as mesmas fontes documentais.
Para estudos futuros como esse, é interessante ampliar o período pesquisado e detalhar mais aspectos a serem observados, bem como procurar outros critérios de análise possíveis para aplicação.
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