Por Felipe Melo
FicSenso
Durante a noite eles dominavam tudo. Corriam dentro das paredes em um ritmo frenético, esfregando as patinhas e farejando todo o chão em busca de restos. Deviam ser dezenas, mas pareciam centenas. Em noites calmas, milhares. Ratos de todos os tamanhos infestavam a casa, a vida, e os piores pesadelos de Marlene. Seus gritos, suas disputas, suas reuniões, a mulher podia ouvir tudo.
Quando mudou para a nova casa, dois anos antes, não notou nada de errado no lugar. O chão era limpo, polido, o quintal grande, as paredes de madeira pareciam firmes e bem isoladas. Mas os meses passaram, e trouxeram consigo a percepção. O silêncio entregou seu defeito fatal: estava irremediavelmente infestado.
Ela não sabe quando eles chegaram, ou de onde vieram. Talvez tenham invadido aos poucos, no meio da noite, vindos do terreno baldio no lote vizinho. Ou talvez a colônia estivesse lá há gerações, atormentando cada novo dono, e roendo cada fruta do pequeno pomar no fundo da casa.
No começo eles não incomodavam. Quando notou pela primeira vez a presença das criaturas, comentou com seu marido, que concluiu que deviam ser dois ou três ratos, vindos da rua, saídos das tubulações do esgoto. Decidiram deixá-los em paz. Marlene não tinha em si a frieza necessária para caçá-los, colocar armadilhas ou veneno.
Mas, com o tempo, o barulho piorava. Mais e mais vozes se faziam presentes na casa que, fora os diálogos incompreensíveis dos ratos, não tinha muita vida. Marlene era a única pessoa que ficava o dia todo lá, sempre na companhia das pequenas criaturas. Seu marido era caminhoneiro, passava semanas, às vezes meses, fora de casa. O filho, no auge da adolescência, estava quase sempre na rua, na casa dos amigos, ou da namorada.
A dona de casa tinha muita dificuldade ao tentar dormir. Passara noites em claro, batendo nas paredes com uma vassoura, para tentar espantar os animais. Tentou tapar todos os buracos que encontrava, arranjou esconderijos para os alimentos, e até adotou um gato depois de algum tempo. Mas o império dos ratos resistia, sem sofrer sequer um arranhão.
O gato, gordo e preguiçoso, estava mais preocupado em dormir do que em caçar comida, já que essa nunca faltava em seu pote. Sempre que via um rato passando o encarava por uns dois segundos, e depois se virava, sem dar muita importância. Os gritos da mulher, e suas insistentes pancadas também não pareciam amedrontar os pequenos donos da casa, que sempre arrumavam um jeito de furar um saco, ou roer uma fruta.
O problema só parecia se agravar. A colônia prosperava, vivendo da fartura do pomar, e dos sacos de feijão. E, na medida em que prosperava, também ela crescia. Ratos são como os coelhos - escutou a amiga dizer, cansada de ouvi-la reclamar do problema - quando começam a fazer filhotes não param mais, seu problema só vai piorar. Você devia encontrar outro lugar para morar.
Mas Marlene sabia que essa não era uma solução alcançável. Estavam atolados em dívidas, e o salário do marido mal dava para segurar as pontas. Tinham comprado a casa com a herança que recebera de sua mãe, decididos de que lá seria o lugar que viveriam até o fim de seus dias. Mudar não era uma opção.
Uma madrugada, ao tentar chegar até a geladeira no escuro, a mulher tomou um dos maiores sustos de sua vida. Ao entrar na cozinha ela pisou em algo quente e peludo, sentiu a coisa se espatifar sobre seu pé, e, no susto, escorregou e caiu de costas no chão. Antes que pudesse se recuperar, sentindo o corpo todo doer, e a cabeça girar, ela se viu cercada de pequenas sombras, no escuro quase total da cozinha.
Sob a pálida luz esverdeada do relógio do microondas ela foi torturada pelos ratos. Mordida em todas as partes do corpo, teve pedaços minúsculos de si arrancados pelos afiados dentes das pequenas e sanguinárias criaturas.
Tudo isso não durou mais que um minuto. Os roedores voltaram às paredes em um segundo, como se nunca tivessem pisado naquela cozinha. Enquanto isso, o corpo do rato esmagado ainda se encontrava no chão, inerte, ao lado da mulher, que chorava e gritava freneticamente.
Marlene correu para o banheiro, se trancou, e olhou o próprio corpo no espelho, com dezenas de pequenos machucados, escorrendo lentamente em sangue quente. Desesperada, ela abriu o chuveiro. A água, que parecia ferver, caía em seu corpo, fazendo tudo arder intensamente. A mulher, com repulsa de si mesma, esfregava o corpo todo com a bucha, usando toda a força que conseguia.
Sua pele queimava cada vez mais, mas ela não tirava de si a sensação das pequenas criaturas pisando, mordendo, gritando, adentrando seu corpo aos poucos, enchendo-a de doenças e vermes. A água vermelha descia incessantemente pelo ralo, até que ela desabou.
Quando acordou, sabe-se lá quantas horas mais tarde, a água do chuveiro ainda caía sobre ela. Seu corpo inteiro ardia, e ela podia perceber claramente a dor, uma vez que o pico de adrenalina havia passado. Mas o pior era sua cabeça, que parecia sangrar não somente por causa das mordidas. Ela se lembrava vagamente de ter caído uma ou duas vezes, mas a memória logo foi esquecida quando se lembrou do pior: os ratos. Marlene imediatamente se contorceu no chão, vomitando de nojo e de enjoo.
Percebendo que precisava de ajuda, imediatamente se recompôs e usou todas as forças para chegar até o quarto. Ela localizou o celular em cima da cama, ligou para uma ambulância, passou o endereço de sua casa, e apagou novamente.
Quando acordou, cercada por uma luz forte e uma cortina verde, estava imobilizada, com a cabeça enfaixada e coberta de curativos. Um vaso de flores roxas se encontrava na mesinha ao lado de sua cama, e logo a enfermeira entrou no quarto para aplicar um líquido transparente na bolsa ligada à sua veia. “A paciente recuperou a consciência”, ouviu ela falar para um homem que passava de fora do quarto. Ele fez anotações em uma prancheta, e sumiu de vista.
- A senhora está no pronto socorro municipal, foi encontrada em sua casa às oito horas de hoje, após ligar solicitando uma ambulância. Você sofreu uma concussão leve, e os exames não mostram danos mais graves, realizamos os procedimentos cabíveis e estamos te aplicando a medicação adequada. Sobre seus outros ferimentos… Um dos médicos virá conversar com você mais tarde, mas também aplicamos anti-inflamatórios para evitar qualquer complicação.
A enfermeira se retirou do quarto, fechando a porta. Marlene tentava se lembrar do que havia acontecido, mas sentia uma moleza confortável, a dor parecia distante, e a vontade de desligar se aproximava rapidamente.
Muitas horas mais tarde, após recuperar novamente a consciência, a mulher se viu diante de um homem de jaleco. Ele repetiu o que a enfermeira havia dito mais cedo, e acrescentou perguntas sobre os outros ferimentos de Marlene. O homem perguntou se ela sofria de algum transtorno compulsivo, já que haviam constatado que os vários arranhões, juntamente com os pequenos buracos que cobriam o corpo da mulher, haviam sido auto infligidos.
Revoltada, ela tentou explicar o que aconteceu, e sobre os ratos. Disse que tinha sido cercada, escorregou, caiu de costas, apenas para ser abocanhada dezenas de vezes pelas criaturas. Depois correu para o banho, e se ensaboou freneticamente, antes de apagar. O médico olhou com descrença por cima dos óculos, e passou algum tempo em silêncio, anotando em sua prancheta. Tentou fazer a paciente entender a situação, dizendo que aquela seria sua versão oficial, e que eles apenas queriam ajudar. Mas ela não recuou, e manteve a história que contava, dizendo: “podem ir na minha cozinha para ver se não encontram o rato esmagado”.
Alguns dias mais tarde, depois de ter alta, ela voltou para casa. Ao saber o que aconteceu seu marido ligou para o filho, e o fez prometer que passaria algumas semanas em casa, cuidando de sua mãe. Marlene desconfiou que eles não acreditavam nela, mesmo sabendo da existência dos ratos. Há muito tempo consideravam-na louca, dizendo que ela se perdia dentro de si por passar tanto tempo sozinha, mas nunca se dispunham a tirar tempo para passar com ela.
Os ratos pareciam ter dado uma trégua nos primeiros dias. Talvez o confronto entre os dois, que terminou em perdas para ambos os lados, tenha servido para acalmar os ânimos das criaturas. Ela conseguia se recuperar bem dos ferimentos, embora o trauma e o medo de sair da própria cama durante a noite fosse cada vez maior.
Com o tempo, passou a desconfiar do silêncio. Pensar que toda aquela calmaria seria apenas o sinal de que os ratos planejavam algo. E se ainda estivessem desejando vingança pela morte de um dos seus? Afinal, ela saiu ferida, mas o pobre rato que esmagou não viveu para conhecer um outro dia. A tensão só aumentava dentro da mulher, que agora tinha certeza de que vivia em um ambiente de constante guerra fria. E ela era um alvo fácil.
Depois das primeiras semanas, logo que o filho se esqueceu da promessa que fizera ao pai, ela voltou a ouvir o barulho dos ratos. Mas, dessa vez, algo estava diferente. Ela podia jurar conseguir ouvir risadas e cochichos. Partes de planos malignos e mirabolantes para obter a sua cabeça. Ela decidiu começar a anotar tudo em um caderno.
Um dia pensou ter ouvido um rato dizer que haviam sabotado o computador, e que o mesmo explodiria no momento em que ela apertasse o botão de ligar. Marlene, então, jogou a máquina fora no primeiro caminhão de lixo que passou. Outra vez, ouviu dizer que os ratos haviam envenenado cada fruta na jaboticabeira do quintal. E lá foi ela, às pressas, panhar todas antes que alguém pudesse comer alguma.
Depois de todo o esforço, cansada de subir naquela árvore, ela viu seu medo morrer, e ser substituído pelo mais puro ódio. Os ratos tinham passado do limite. Não estavam atacando só a ela, mas a todos que viviam em sua casa. E se o marido tivesse comido uma jaboticaba? E se o filho usasse o computador? Estavam mexendo também com sua família.
Mexendo como, se eles nunca estão aí? - disse uma voz em seu interior. Mas ela não deu atenção, estava mais preocupada em preparam um contra-ataque contra os ratos. Precisava de um plano sólido, uma estratégia para eliminar de vez aquelas pragas.
Nas semanas que se seguiram, o clima na casa não foi mais o mesmo. A guerra estava declarada, e qualquer deslize de uma das partes podia significar a morte. Marlene passava os dias tentando escutar as paredes, procurando qualquer pista sobre uma possível fraqueza da colônia. Mas os ratos tinham se tornado silenciosos, falavam de seus planos baixinho, deixando apenas algumas gargalhadas escaparem aqui ou ali.
Estavam, também, mais destemidos. Andando pela casa para cá e para lá, sem nem tentar se esconder. Vez ou outra paravam e olhavam no fundo dos olhos da mulher, por alguns segundos, mas depois iam embora antes que ela tivesse qualquer oportunidade de atacar.
Marlene pensou em envenená-los. Mas eles eram espertos, e já haviam tentado fazer isso com ela. Nunca cairiam no mesmo truque que tentaram utilizar. Ratoeiras talvez pudessem pegar um, talvez dois ratos, mas jamais conseguiriam dizimar a colônia. Completamente frustrada, ela se sentia incapaz, por não ser mais esperta que aquelas criaturas. Sempre concluindo que suas tentativas de ataque seriam sobrepujadas.
As noites continuavam sendo os piores momentos: era quando a guerra se fazia mais presente naquela casa. Ela, frustrada e derrotada, não dormia, com medo de um ataque surpresa. E convivia a noite toda com as gargalhadas e os gritos dos ratos na parede.
Até que, em uma noite de domingo, não conseguiu mais aguentar. Pegou um martelo e começou a golpear as paredes com a face pontiaguda, deixando pequenos buracos, assim como os roedores fizeram com seu corpo. Fincava o martelo na parede e fazia força para arrancar as tábuas, arremessando-as até o outro lado do quarto.
Mas os ratos eram ágeis, e, quando ela puxava uma tábua, só conseguia encontrar a sujeira, os fios, e as tubulações. Eles, no entanto, pareciam enfurecidos com a audácia da mulher que ousara perfurar os muros de sua fortaleza.
Gritavam coisas horríveis. Ameaçavam-na das mortes mais dolorosas. Guinchavam um ruído estridente, que fazia os ouvidos de Marlene doerem. Mas ela continuava a arrancar as tábuas freneticamente, fazendo centenas de furo nas paredes, conseguindo encontrar apenas um rato, que logo fugiu como um vulto por entre os canos.
Tendo enchido de furos, e arrancado dezenas de tábuas das quatro paredes de seu quarto, a fúria da mulher apenas aumentava. Não havia capturado um rato sequer, e o único que conseguiu ver havia fugido sem problema algum.
Cansada, ela se jogou em sua cama, tentando acalmar os próprios nervos. Nesse instante os ratos perceberam sua desistência, e começaram, em conjunto, a cantar uma cantiga aguda e irritante, sobre a morte de Marlene. Ela, sentindo a fúria tomar conta de si, correu para a cozinha, pegou uma garrafa de álcool e uma caixa de fósforos. Voltou ao seu quarto com os ouvidos zumbindo, e a cantiga dos ratos cada vez mais alta.
Marlene derrubou todos os livros de sua estante, arrancou as páginas e espalhou por todos os lados. Sentia o coração bater em sua testa, e a cantiga dos ratos já parecia distante, à medida que o zumbido em seu ouvido aumentava
A mulher derrubou a garrafa de álcool em uma pilha de papel, acendeu o fósforo, deitou em sua cama, e assistiu a tudo queimar, antes de perder a consciência.
A casa toda ardeu em chamas durante horas. Sua habitante solitária foi consumida pelo fogo. Os vizinhos comentavam que ela havia sido tomada pela loucura, e consumado o suicídio, que tentava pela segunda vez nos últimos meses.
Ao sair da casa em chamas, o gato gordo de Marlene observou com frieza enquanto alguns ratos fugiam às pressas, e se enfiavam por entre as grades do bueiro, de volta aos esgotos.
Comments