top of page

Praia dos ossos, feminicídio e a tese da legítima defesa

Por Bruna Villela

Grupo Narra


Uma “pantera que arranhava com suas garras o coração dos homens”. Essas foram as palavras usadas pelo advogado Evandro Lins e Silva para definir Ângela Diniz diante do tribunal que julgava um caso de assassinato em Búzios no final da década de 1970. Ao contrário do que possa parecer, Ângela era a vítima, morta a tiros pelo réu confesso Doca Street, seu companheiro, que, nas palavras da defesa, era um “mancebo bonito que se encantou pela beleza e sedução de uma mulher fatal”. A cena é narrada no podcast Praia dos Ossos, ao expor o ponto central da defesa, que apostou no julgamento moral de Ângela Diniz e no perfil edificante do assassino, argumentando que ela teria provocado a própria morte. O programa detalha, assim, como uma sociedade patriarcal e machista tinha na “legítima defesa da honra” uma tese que até recentemente era usada na justiça brasileira.


Em 30 de dezembro de 1976 em Armação dos Búzios (RJ), em sua casa na Praia dos Ossos, Ângela Maria Fernandes Diniz foi assassinada com quatro tiros pelo seu companheiro, Raul Fernando do Amaral Street, o playboy Doca Street. Mais conhecida por Ângela Diniz, a socialite nascida em Belo Horizonte era chamada pelas revistas ilustradas e colunas da época de "A Pantera de Minas”. Sua aparição na mídia se fazia presente desde a adolescência e, após aquele ano, essa “participação” tornou-se cada vez mais corrente. O crime ocorreu após um desentendimento do casal que se iniciou ainda durante o dia e estendeu-se até a noite, resultando na morte de Ângela.



Retomando o famoso caso, o podcast “Praia dos Ossos” foi uma produção original da Rádio Novelo, e levou dois anos para reconstituir o caso em oito episódios com cerca de uma hora de duração cada, que nos fazem ir além do crime em si e refletir sobre as relações entre a sociedade brasileira de 40 anos atrás e a de hoje. Praia dos Ossos, idealizado e apresentado pela linguista Branca Vianna, pode ser compreendido pela categoria conhecida como true crime, um tipo de narrativas sobre crimes reais acompanhadas de um processo de investigação e pesquisa jornalística. O comportamento da época, a tradicional família mineira, a alta sociedade carioca, o julgamento, o patriarcado, o feminismo e a diferença de classes são tópicos levantados na discussão em torno e além da personagem protagonista, e nos fazem pensar sobre a transformação que decorreu - ou não - daquela época para cá.


E nessa história, a ideia de defesa da honra chama atenção. Essa defesa não possuía amparo legal, mas repercutia uma antigo entendimento jurídico que vigorou no Brasil Colônia, presente em um documento que se chamava Ordenações Filipinas: “Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matá-la, assim como o adúltero. Salvo se o marido for peão e o adúltero fidalgo ou desembargador ou pessoa de maior qualidade”. Isso significa que, por lei, o marido tinha uma justificativa para matar sua mulher e o respectivo amante. A regra valeu por mais de 200 anos, até 1830, quando houve a elaboração do primeiro código penal imperial. A defesa da honra deixou de ser um argumento formal, mas o novo regulamento conteve brechas para o que vieram a ser chamados de “crimes passionais”. Com isso, com o tempo, criou-se condições para absolver “os que se acharem em completa perturbação de sentido e inteligência no momento de cometer o crime”. Porém, frente a tanta matança de esposas, ao longo dos anos 1930 houve uma campanha de procuradores para alterar a lei. O Código Penal, uma década depois, passou a declarar que emoção e paixão não são motivos para absolver ninguém, servindo apenas, eventualmente, como argumento para redução de pena.



No caso de Ângela Diniz a tese da legítima defesa da honra foi utilizada pelo advogado, mesmo que não fizesse parte do código penal brasileiro. Mas como isso era possível? A resposta é simples: quem decide a culpa em um assassinato não é o juiz, mas um júri popular. Era uma comunidade conservadora interiorana, no final da década de 1970, que o advogado buscava convencer ao se referir a seu cliente como um “homem ofendido em sua dignidade masculina” o qual valendo-se de um “gesto de desespero” revidou contra uma “vênus lasciva”. Doca Street acabou sendo condenado (com a pena reduzida sob o argumento do crime passional), mas a derrota da tese não impediu que continuasse a ser muito utilizada em casos de feminicídio no Brasil.


Somente em março deste ano, o STF se posicionou pela inconstitucionalidade da tese de legítima defesa da honra, impedindo definitivamente seu uso. O dia 12 daquele mês entrou para a história do Brasil, demonstrando uma evolução tardia, mas importante, da justiça no país - envolvendo o modo como a própria sociedade enxerga a mulher em nossa cultura. A derrubada da ideia retrógrada de que a vida das mulheres estaria à disposição dos homens representou a esperança da valorização da equidade de gênero em relação a artifícios totalmente discriminatórios que ainda incidem contra a mulher.


O caso Ângela Diniz é apenas um dos exemplos em que mulheres vêm sendo - direta ou indiretamente - culpabilizadas pelas violências que sofrem. Mas a relevante repercussão que a retomada dessa história pelo “Praia dos Ossos” tem obtido, seguida de uma histórica alteração na estrutura jurídica no país, mostra que discutir os valores, ideias e posicionamentos que apontam para certos modos de ser mulher na sociedade brasileira se faz um exercício muito necessário.


***


Esse texto foi feito em conexão com o projeto de extensão do Narra no Instagram. Para conhecer os conteúdos do projeto, acesse operfil. E para saber mais sobre o grupo, acesse osite.

0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page