Um monte de mentiras
- Sinestesia Literária
- 8 de jun. de 2021
- 2 min de leitura
Por Milena Félix
Sinestesia Literária
Ela tinha acabado de construir um edifício enorme. Uma casa dos sonhos, feita com o suor de anos de esforço e de pensamento fixo naquela missão. Tudo havia sido cuidadosamente pensado e planejado. Agora, que enfim estava pronto, ela contemplava o trabalho de uma vida. Aquela casa era seu castelo, a própria realização dos seus sonhos.

Era uma delícia admirar cada detalhe da construção. O piso chique, bem limpinho e brilhante. Os móveis de luxo, as roupas no armário, tudo era novo. Ela tinha deixado tudo organizado e cheiroso.
O espaço todo causava nela uma sensação de dever cumprido. Finalmente, as coisas estavam dando certo. Dentro daquelas paredes, ela estaria segura de toda a desaprovação. Debaixo daquele teto, haveria proteção do frio e da chuva que a vida fazia questão de derramar sobre ela. Sobre aquele piso, ela poderia se erguer forte e se afirmar para o mundo. Os móveis elegantes garantiam sua sensação de dignidade. A decoração da casa a fazia se lembrar de que era livre para personalizar a vida como quisesse.
Mas algo a incomodava naquela construção. A cada dia, as coisas pendiam um pouco. O chão afundava, como se estivesse caindo. A parede ficou torta, e os móveis não paravam em pé muito bem. Algo estava errado. Mas, como tudo aquilo era tão importante, ela fazia vista grossa: continuava contemplando, sorrindo e se apoiando no que havia construído para si mesma.
Lá no fundo, ela sabia a verdade. Se não sabia, desconfiava. E se sabia, fingia que não tinha a menor ideia. Era algo latente, que lhe tirava o sono à noite e não a deixava se levantar da cama pela manhã. "Não dá para negar para sempre", uma voz lhe dizia quando vinham os momentos de sobriedade. Mas, em geral, ela se esforçava para ficar inebriada o bastante pela ideia da casa, para não assumir o que estava por vir – o fato é que tudo aquilo em que ela se apoiava se tratava de uma construção de areia, e que estava fadada a ruir.

Uma mentira. Na verdade, um monte de mentiras. Paredes que não eram de concreto, mas de material que não se sustenta. Um piso fraco e suspenso. Um teto falso, sob o qual ela colocou móveis de luxo.
A verdade é que ela nunca quis casa. Nunca quis teto, nem parede, nem concreto, muito menos areia, e nunca quis luxo, nem nada do que tinha. Ela construiu de maneira tão descuidada porque construiu com pressa. Sem ajuda, quando precisava de um teto sobre sua cabeça. Ela fugiu para um deserto e construiu uma casa lá. O que mais poderia fazer? Apressada, antes que outra tempestade viesse. E fingiu, por todo o tempo que pôde, que aquilo não ia desmoronar.
As bases de sua construção eram instáveis. Obscuras. Tudo o que construiu na vida foi colocado em cima de coisas mal resolvidas, de insegurança e abuso, de dor e indignidade, de baixa autoestima e desesperança, de extrema pequenez.
E o que restava a ela fazer?
Quando assumiu o que tentava esconder, decidiu, por si só, derrubar todo o castelo. Desceu do monte de areia e ficou, mais uma vez, desabrigada no deserto.
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